Vem aí muito dinheiro. Se as contas da Graça Franco estão certas, Portugal irá receber, nos próximos seis anos, sete milhões de euros por dia, entre ajudas a fundo perdido e empréstimos a baixo juro. Mas já se ouve dizer que não chega. Aliás, o dinheiro, para quem faz dele seu centro ou projeto de vida, nunca será suficiente. Mas o problema, no nosso próprio contexto, nem estará na (in)suficiência do valor da verba que Portugal terá à sua disposição para se reerguer e modernizar, segundo critérios e exigências de Bruxelas.
Não aprendemos nada com a anterior crise económico-financeira. O acento capitalista num moralizado empreendedorismo e num investimento na pessoa em si, como forma de contornar o desemprego, a perda de rendimentos e o atraso pela falta de formação e modernização, não conseguiram que um agravado endividamento e vulnerabilidade de milhares de pessoas – culpabilizadas pela sua situação, que a atual crise sanitária tornou ainda mais visível, tendo já feito colapsar milhares de casos. E também não iremos aprender com esta, por mais que nestes últimos meses se tenha ouvido dizer que ‘nada voltaria a ser como dantes’. Na verdade, salvo a fome, o encerramento de empresas, e com elas o crescente agravamento do número de desempregados, e o uso obrigatório de equipamento de proteção individual, o retomar da normalidade tem tido muito pouco de diferenciador, o que significa, na conceção defendida por exemplo, por Bernard-Henri Lévy, em oposição ao “mundo refém do medo”, que o regresso em que se vai novamente cair não será apenas o da desejável “confiança do aperto de mão, dos abraços e das viagens”, mas o do problemático crescimento económico e o dos excessos da vida solipsista, de consumo crescente, com todas as suas assimetrias sociais e desastres ambientais, tal como os conhecemos.
Os dias de confinamento não foram apenas intermináveis horas de teletrabalho, mas de cuidado para com os filhos, os avós, os que perderam o trabalho, os doentes, os animais de estimação. Não foram, por isso, dias para refletir e pensar a vida à luz da pandemia. Ter tempo para pensar tornou-se um luxo nos nossos dias, um direito que deixou há muito de o ser, porque o tempo deixou de ser um bem de cada um, para ser dos bancos, das seguradoras, das empresas, dos proprietários, dos credores. Com o tempo hipotecado, as pessoas deixaram de se poder imaginar e recriar. Deixaram de poder ser a diferença de si mesmas. Despidas da sua dignidade, do seu nome, as pessoas não são mais que um código de barras de uma economia focada na gestão e criação de antigos e novos devedores. Por isso, sem tempo, como poderia alguém desejar algo de novo que não fosse sua normal rotina, o escravizado-dever de trabalhar noite e dia para saldar uma interminável sucessão de dívidas? E o mesmo acontece ao nível do Estado.
Há muito que contesto a falta de um Projeto Geopolítico para Portugal. Por isso, a verdadeira questão, do meu ponto de vista, não está no pouco ou muito dinheiro disponível, mas na total ausência de rumo. Não entendo ser aqui injusto para com estratégias partidárias de recuperação e lançamento da economia portuguesa, ou com a que foi por estes dias publicamente apresentada no Centro Cultural de Belém, por um consultor externo do atual governo. Mas quando a dívida externa líquida portuguesa era em março deste ano de 180,9 mil milhões de euros, representando 85,4 por cento do Produto Interno Bruto (PIB), as visões estratégicas de recuperação da economia durante a próxima década, só podem ser reativas aos mercados, às exigências de quem dá ou empresta dinheiro e ao complexo de inferioridade do qual, no confronto com os outros, os portugueses nunca se souberam libertar.
A recuperação e modernização de Portugal não pode de todo acontecer em função do “Guinness Book”. E hoje, refletir seriamente sobre quem queremos ser, que tipo de cidadão, de família, de empresa, de organização, de igreja, de país, deixou de se poder apenas fazer com a espécie humana sentada à mesa das negociações. O Novo Regime Climático de que nos fala Bruno Latour, nas suas obras mais recentes, exige um outro tipo de projeto para Portugal, onde todos os seres, com a terra, se possam ver incluídos como agentes políticos de pleno direito. Por impossível ou estranha que pareça, a ideia de um “Parlamento de Todos os Seres”, defendida por Latour, não é utopia de quem vive nas nuvens, mas o que é exigido a cada sociedade, cada vez que pensa quem quer ser, como viver e onde chegar de forma sustentável.
Temo, por conseguinte, que sem se ter aprendido absolutamente nada com um passado recente e com a nossa própria atualidade, programas de recuperação, de reforma e de investimento público possam ser mera expressão de uma megalomania governativa que constrói monumentos para si, de um desejo de sermos iguais aos outros, de um forçoso, ainda que necessário, uso de ajudas e empréstimos a benefício dos que sempre souberam e sabem muito bem como meter as mãos no dinheiro.
O povo, como tal, não existe, como não existe o que chamamos de vontade popular. Mesmo assim, sem que resulte e a preceda um sério e generalizado debate sobre o que queremos para Portugal, para nós, diante do dinheiro, qualquer visão estratégia será sempre segundo o interesse de uns “chico-espertos”, sendo o mesmo, seu próprio fim.