Entrevista a Ana Lúcia Sá, investigadora do Centro de Estudos Internacionais do ISCTE sobre o impacto da pandemia no continente africano, que em meados de junho era ainda o menos afetado, depois do epicentro da Covid-19 ter passado sucessivamente da Ásia para a Europa e da Europa para as Américas
Acredita que em termos de Covid-19 o pior para África ainda está para vir?
Acredito que o pior está para vir em termos de consequência da Covid-19, não falando necessariamente do contágio pelo coronavírus, mas sim nos vários campos que afetam os Estados e as populações. O atual contexto vai ter consequências diretas no aumento das já existentes desigualdades e assimetrias a nível global, sendo mais prementes em países com maiores vulnerabilidades. Em todos os países são adotadas medidas para lidar com uma situação excecional e isso tem também consequências diretas nas economias do continente. O sistema internacional é, como sabemos, desigual. Há países que dependem da exportação de matérias primas, seja da indústria extrativa seja de outros bens. África tem sido o fornecedor de matérias primas sem que isso reverta a favor da melhora das condições de vida de grande parte das populações ou em medidas claras de proteção social. Vários países africanos, como a Argélia ou Angola, encontram-se entre os mais desiguais no mundo, com uma percentagem significativa da população a viver em situação de pobreza multidimensional. Estima-se que em Angola uma em cada três pessoas tenha essa experiência de pobreza multidimensional. E isso tem implicações diretas no acesso à educação, a cuidados básicos de saúde e a trabalho. Um número grande de pessoas vive de trabalhos precários e, em termos socioeconómicos, as medidas de confinamento e de distanciamento social levam diretamente a dificuldades de sobrevivência. Com o fecho de fronteiras, países e localidades que dependem da importação de pequenos bens de consumo ou de material médico estão em situações humanitárias graves. A tudo isto se juntam secas ou pragas de insetos, como as que se vivem na África Austral. A este quadro ainda podemos juntar um expectável fortalecimento de tendências autocráticas, com formas diversas de repressão associadas a estados de calamidade ou de emergência, ou a suspensão de campanhas de vacinação, estimando-se o regresso de doenças que já estavam controladas, como a poliomielite e o sarampo. Em suma, para a maior parte das pessoas no continente africano, a luta contra a Covid-19 é mais um fator agravante das lutas quotidianas que tem de travar.
Como vê a situação nos PALOP? Guiné-Bissau está pior por causa da fragilidade do Estado ou é exagerado tirar esta ilação?
Quando a OMS [Organização Mundial de Saúde] declarou a situação de pandemia, os países tomaram medidas céleres, mesmo que não tivessem casos diagnosticados. Há quem defenda que uma das vantagens dos países africanos foi esta iniciativa atempada. Houve estratégias diferentes por parte dos governos africanos para lidar com esta crise, que não dependeram do número de casos diagnosticados nos países ou sequer dos regimes políticos. Nos dois extremos, houve países que não impuseram distanciamento social e realizaram eleições previstas, como o Burundi, e países que adotaram medidas mais severas de confinamento, como Angola. A Guiné-Bissau estava a braços com uma crise política que era urgente resolver e que teve implicações na forma como não respondeu com as medidas sugeridas pela OMS para conter uma rápida propagação do vírus. Houve inclusive o desrespeito pelos próprios atores políticos de medidas de distanciamento social. A preocupação prevalecente era a de legitimar o governo e não a saúde pública. Para além de ser, dos PALOP, o que tem mais casos reportados, logo seguido pela Guiné Equatorial, é um país com estruturas deficitárias de saúde, sem capacidade de resposta. Os PALOP vão ter consequências desastrosas em termos de tecido económico e social. Já se sabe que as remessas de emigrantes vão diminuir drasticamente, o turismo vai entrar em grave crise e as exportações também. Em Angola, país em recessão económica, a cesta básica tem um custo de 15.000 kwanzas (cerca de 23 euros), que é incomportável. Em Moçambique, vivem-se pressões de grupos terroristas e focos de conflito. Creio que podemos afirmar que, em todos estes países, estão criadas as condições para uma tempestade perfeita.
São fiáveis os dados no continente?
O continente africano é muito diverso e há países com dados mais facilmente apuráveis do que outros. O mesmo se passa nos outros continentes. No caso específico da Covid-19, não creio que haja dados fiáveis em termos globais, por motivos diversos, que vão de um número mais reduzido de testes e desconhecimento do número real de infetados até à falta de transparência. Mas quando falamos de dados, mesmo não relacionados com esta questão sanitária, sabemos das dificuldades em ter dados precisos, especialmente em países em conflito, ou pós-conflito ou nos que têm estruturas burocráticas mais frágeis. Há muitas pessoas sem existência legal, porque não estão registadas. Há países nos quais é mais fácil obter cartão de eleitor do que documento de identificação. No caso de regimes autoritários, não há uma prática de transparência na recolha e divulgação de dados. Inclusive nota-se censura sobre a pandemia e os casos realmente existentes. E estes são alguns dos problemas que se colocam quando falamos de dados e da sua fiabilidade. Ainda assim, é de louvar o trabalho do Cento para o Controlo e Prevenção de Doenças da União Africana em termos de recolha e tratamento de dados e de assistência aos países membros. Apesar de ser uma instituição recente (criada em 2017), o Centro tem um papel reconhecido no controlo e mitigação dos efeitos de surtos de ébola na África Central. Esperemos que seja uma instituição que continue a crescer e a merecer os apoios de governos e de privados.
A pandemia tornou a Europa indesejável para os migrantes ou o sonho do ‘eldorado’ mantém-se?
A percentagem de africanos que emigra para a Europa é bastante pequena quando vemos os números totais. A grande maioria das pessoas, quando emigra, fá-lo dentro do continente. O grosso de emigração dá-se para países produtores de recursos e de matérias primas destinadas ao mercado global. Comparada com estes países, a Europa nada tem de ‘eldorado’. É mais atrativa para profissionais altamente qualificados, mas, ainda assim, sou bastante reticente em continuarmos a considerar essa imagem da Europa como se de um ‘eldorado’ se tratasse, quando é o continente africano o que tem mais capacidade de atração.
Há novos casos de ébola na República Democrática do Congo. Deveria a OMS preocupar-se mais com estas doenças tradicionais muito mortíferas do que com a Covid-19?
A OMS está a dar uma resposta institucional e global a esta crise. Mas quando falamos em OMS não falamos apenas da vontade de uma instituição global, mas de todos os que permitem ou inibem as ações desta estrutura. As decisões dos países de fecharem fronteiras, de proibirem viagens, entre outras, para conter o contágio levou a que profissionais de saúde e equipamento médico não chegassem onde são necessários. Se num país como Portugal temos bem instituído o plano nacional de vacinação com cobertura universal, o mesmo não se passa em Moçambique, por exemplo, que depende largamente de estruturas internacionais e de organizações não governamentais para poder vacinar. A OMS e a UNICEF já advertiram para a previsibilidade de 80 milhões de crianças poderem contrair doenças como o sarampo ou a poliomielite porque os programas de vacinação foram interrompidos. Esta situação nunca se verificou a esta escala e deve-se a todo o contexto Covid-19. Neste momento, está ativo um novo surto de ébola no leste da República Democrática do Congo e é necessária uma rápida resposta. A Covid-19 não deverá colocar durante mais tempo em suspenso as respostas às questões sempre emergentes em contextos mais vulneráveis.
Texto: Leonídio Paulo Ferreira, jornalista do DN