Para a Etiópia, tal como o próprio nome do projeto anuncia, a Barragem do Grande Renascimento Etíope é uma promessa de nova riqueza. Mas para o Egito, que desde tempos imemoriais depende do Nilo, a Gerd (sigla em inglês do megaprojeto lançado em 2011) é uma ameaça de pobreza. Não admira, pois, que mesmo com mediação das Nações Unidas, os dois países usem palavras guerreiras quando discutem a barragem, as quantidades de água que serão retidas, a distribuição que tem de ser assegurada em anos de seca. Os 110 milhões de etíopes acreditam que a maior central elétrica de África vai trazer luz ao país, no sentido literal e não só, enquanto os 100 milhões de egípcios temem que a barragem seque o país, tanto no sentido literal como no mais lato, pois 90 por cento da população vive nas margens do mais longo rio do mundo, cerca de sete mil quilómetros desde o Lago Vitória no coração de África até ao Mediterrâneo.
Como na Etiópia se vive a época das chuvas (que costuma durar de junho a setembro) o enchimento da Gerd está já em curso, apesar das negociações continuarem. Depois de vários atrasos na construção, a barragem está finalmente edificada. E se foi o falecido primeiro-ministro Meles Zenawi que há nove anos pôs a primeira pedra, hoje em dia é Abiy Ahmed que surge como o líder que a completou, o que no contexto político da Etiópia, muito fragmentada etnicamente e dividida entre cristãos (maioria) e muçulmanos, vale muito em termos de prestígio. Percebe-se porque um homem que em 2019 ganhou o Nobel da Paz por ter estendido a mão à vizinha Eritreia agora diga que “há milhões de etíopes” dispostos a defender a barragem de qualquer agressor.
Foi, porém, o Egito quem primeiro falou de guerra por causa da Gerd e logo em 2013, quando a barragem que custou quatro mil milhões de dólares avançava a passo de caracol. Mohammed Morsi, o presidente eleito na sequência da Primavera Árabe, promoveu uma reunião para debater o tema e houve quem o aconselhasse a enviar aviões a bombardear o betão que os etíopes já tinham erguido no Nilo Azul. E as ameaças foram registadas em vídeo. Desde então Morsi foi derrubado (e morreu na prisão) mas o seu sucessor, Abdel Al-Sisi, um antigo general, mantém a retórica agressiva, até porque o Nilo é sagrado para qualquer egípcio, e a sua defesa nunca dependerá de ideologias de quem está no poder no Cairo.
O bizarro é que apesar dos tambores de guerra soarem, Egito e Etiópia nem sequer têm fronteira comum e pelo meio fica o Sudão, que chegou a ser o maior país de África até à independência do Sudão do Sul. Nesta disputa atual, o Sudão está ao lado do Egito, pois teme também perder águas.
Falemos um pouco de geografia: o Nilo nasce no Lago Vitória, no Uganda, e corre para Norte. O seu nome então é Nilo Branco. Mas em Cartum, capital sudanesa, conflui no Nilo Branco o Nilo Azul, que nasce no Lago Tana, nas montanhas etíopes, e fornece o essencial do caudal do Nilo propriamente dito, o que banha o Cairo e desagua no Mediterrâneo, através de um delta perto de Alexandria. Há um outro grande rio etíope, o Atbara, que no Sudão, já a Norte de Cartum, se junta ao Nilo, reforçando ainda mais o caudal.
A tensão que a Gerd gera tem uma explicação histórica. O antropólogo Manuel João Ramos, autor do livro Histórias Etíopes, afirma que a inimizade entre egípcios e etíopes remonta à Alta Idade Média. Potência islâmica de um lado, (apesar de 10 por cento de coptas), potência cristã do outro. E estas guerras entre muçulmanos e cristãos pelo controlo da Abissínia chegaram a envolver os portugueses, com Cristóvão da Gama, filho do famoso navegador, a morrer numa batalha no século XVI.
Na imaginação do italiano Giuseppe Verdi, a guerra entre egípcios e etíopes teria mesmo raízes na era faraónica, pois a sua ópera Aida trata a história do amor proibido entre uma princesa etíope feita escrava e o general egípcio Radamés.
A ópera Aida foi encomendada para a inauguração do Canal do Suez em 1869. E o Suez é outro excelente exemplo de como a água, seja rio seja mar, é decisiva para o desenvolvimento dos países. Construído com capitais franco-britânicos, o Suez permitiu encurtar em milhares de quilómetros a viagem marítima entre a Ásia e a Europa, evitando aos navios a rota do Cabo, ou seja contornar o sul de África. Mas só em 1956, e por força das armas, o Egito assumiu o controlo do canal, um feito do Presidente Gamel Abdel Nasser. Foi esse mesmo Nasser que depois lançou a construção da gigantesca barragem de Assuão, terminada em 1970, meses antes da sua morte, e que aprisionou também o Nilo para desenvolvimento nacional, mas com a vantagem de ser já em território egípcio e portanto sem disputas internacionais. Aliás, a comunidade internacional interveio sim de forma admirável para ajudar o Egito a resgatar imensos templos e estátuas, para os salvar de ser submergidos pelo que ficou a ser conhecido como o Lago Nasser, um vasto reservatório de água situado no sul do país. A parte mais negativa do projeto da Barragem de Assuão foi a deslocação das populações núbias, com os descendentes ainda a reivindicarem serem indemnizados pelo Estado.
Também a Etiópia tem uma relação complicada com a água. No caso da dos rios, porque apesar de ter muita em certas regiões e certas alturas do ano, noutras regiões e estações falta de forma dramática, dando origem a fomes. E no que diz respeito ao mar, depois da secessão da Eritreia em 1993, a Etiópia voltou a ser um país encravado, com grande necessidade de um porto num país vizinho que lhe dê acesso ao oceano Índico, uma das razões, junto com disputas territoriais, da guerra que depois teve com a antiga província.
Derrubado o imperador Haile Sellassié em 1975, a Etiópia foi governada por um regime comunista que se mostrou incapaz de resolver os problemas do país, um dos poucos nunca colonizados em África apesar da ocupação militar italiana já no século XX. Em 1991, um movimento guerrilheiro liderado por Meles Zenawi derrubou o ditador Mengistu e lançou as bases do federalismo, admitindo mesmo o referendo independentista eritreu. Zenawi, que governou 21 anos, quatro como Presidente e 17 como primeiro-ministro, conseguiu ser apoiado tanto pelo Ocidente como pela China, país que tem investido muito na Etiópia. Mas para a construção da Gerd o segredo do financiamento foi recorrer aos próprios etíopes, que semiforçados (funcionários públicos tiveram de doar salário) ou por instinto patriótico, apostaram o seu dinheiro em títulos que lhes prometiam receber parte dos futuros lucros da venda de eletricidade produzida pela barragem. Esse investimento popular explica também a pressão sobre o atual governo para não ceder ao Egito, pois ao orgulho nacional junta-se a vontade de finalmente receber dividendos por um investimento antigo.
O muro da barragem tem dois quilómetros de comprimento e 150 metros de altura e as águas retidas deverão criar um lago ao longo de 250 quilómetros do curso do Nilo Azul. Está previsto igualmente que a central de energia hidráulica instalada na barragem produza 6.000 megawatts (MW) de energia, suficiente para as necessidades da Etiópia e com grande potencial de exportação.
A Gerd passa a ser a maior barragem de África, ultrapassando barragens míticas como a de Assuão (a partir de agora a número três do continente) e a de Cahora Bassa, construída por Portugal nos tempos do Moçambique colonial (passa a quinta maior).
Uma das razões pelas quais se espera um entendimento a propósito da Gerd entre o queixoso Egito e a Etiópia é o envolvimento do Cairo na guerra civil na Líbia, pois para Al-Sisi não convém dar a ideia de que é um promotor de conflitos e muito menos ser apanhado a lutar em duas frentes diferentes em simultâneo. Mas com o aquecimento global toda a disputa de água arrisca ser fonte de guerras.
Texto: Leonídio Paulo Ferreira, jornalista do DN