A pandemia trouxe desafios a todos, sem exceção, e ainda não parou. A vacinação será sempre uma outra fase desta crise, que só se terá por terminada, controlada, quando dela já não se ouvir falar. Mesmo aqueles que se achem referência de vida-exemplar, instituições ou organizações, não terão forma de escapar aos abanões, às mossas e questionamentos da pandemia.
Este não é certamente “castigo divino”, e não valerá a pena interpretar este primeiro ano de um “upside-down mundial”, a todos os níveis, como “vingança de alguém”, por maus tratos recebidos, ao longo de séculos. Sem que um caminho e um destino existam inscritos no ADN da vida na terra, os desafios de uma crise sanitária como esta, de uma outra antes ou futura, serão sempre, eles mesmos, indicadores de uma trajetória que cada um, pessoal e coletivamente, vai ter que traduzir em caminho e horizonte. São já várias as oportunidades perdidas em tão pouco tempo. Fossem duas ou três, no espaço de três ou mais séculos, até talvez se pudessem desculpar, por falta de memória, mas depois de duas guerras mundiais e de sucessivas crises económicas a nível global, a humanidade não poderá ser desculpada em absoluto.
As mudanças que se impõem não terão nada a ver, obviamente, com um fantasioso e romantizado regresso “às origens”, até porque, para além de estarem situadas num recuar infinito, inatingível, nunca presente, e por conseguinte, impossível, “as origens” não são desejáveis por não serem adequadas ao momento presente. No passado encontramos chaves de nos compreendermos no “aqui e agora”; com ele poderemos fazer paralelos, e usar a história, os seus protagonistas, como ferramentas, mas nunca poderemos resolver os desafios de uma pandemia, tentando repetir uma história longínqua ou mais recente. Esta não seria que passivo refúgio, que um desresponsabilizado meter da cabeça dentro da areia. Na verdade, neste tempo já sobejamente apresentado como pós-humano, o que a robótica, a inteligência artificial e a ligação do cérebro humano a um computador abrem como futuro (interrogados do ponto de vista da filosofia, num recente livro de Slavoj Žižek, Hegel in a Wired Brain, 2020), não só não nos remete para o passado, como nos lança ainda mais na direção de um futuro que parece inevitável. Mas mesmo aqui importa sublinhar, que o passado é fundamental, pois o futuro do “homo sapiens” não poderá ser cegamente ultrapassado, sem que difíceis questões se coloquem e se devam responder à luz da que tem sido até hoje a condição humana.
Estamos novamente num final de ano. Temo que, nesta edição, os doze desejos, às doze badaladas, apenas tenham de diferente de anteriores, os grandes aglomerados de pessoas, a festa e o alarido embriagado. Temo que os desejos, na sua maioria, sejam silenciosos regateios comerciais, pois, geralmente, em cada novo calendário, as pessoas querem mais disto ou mais daquilo. Os desejos estabelecem-se com base no que se tem, mesmo que já seja muito ou mais que suficiente. Acredito que “ver a pandemia pelas costas” seja desejo de todos, em 2021. Resta saber se, com a sua neutralização, os tão falados “novos normais” não são que um retomar do mais do mesmo. É que a mudança inscrita na pandemia está bem para lá de mais saúde, mais amor e mais dinheiro.