Não é fácil a esperança, a resiliência, num país onde a verdade e a mentira vão sendo cada vez mais sinónimos, e os interesses económicos são bem mais importantes que salvar vidas. Quando um “Estado de Exceção” se torna norma, o que de mais sagrado conquistámos e retivemos até hoje, substitui-se, sem escrúpulos, pela tirania de salteadores instalados nas instituições de um Estado de Direito, aclamados por multidões, tão semelhantes às que preferiram Barrabás a Jesus.
Em cada renovação do Estado de Emergência, e no confinamento imposto, que nunca é suficiente, o grande pecado é o da total ausência de “empatia” e “gratuidade”. As restrições, que despem do direito à saúde, à habitação, à alimentação, à energia, ao trabalho, as mais simples, humildes e vulneráveis pessoas de um país como o nosso, não só são decretadas por quem detém o poder político, económico, empresarial, mediático, como estas lhes passam simpaticamente ao lado. São restrições para os outros, que lhes estão abaixo. Não são estes os que veem o seu estado de saúde ameaçado por falta de uma consulta ou de uma cirurgia, aguardada há anos; os que vivem em casas sem condições mínimas, sem aquecimento; os que se sentam à mesa, sem nada para comer; os que ficaram sem trabalho e rendimentos; os que têm familiares queridos na solidão fria dos hospitais – por mais que os técnicos de saúde sejam heróis no combate à pandemia, porque o são.
No discurso de tomada de posse, Joe Biden distinguia o “poder do exemplo” do “exemplo de poder”, desejando, por um lado, demarcar-se da estratégia “trumpista” de uma “America Great Again”, pela via da exibição solipsista-narcisista do poder económico, bélico, e por outro, afirmar que só pelo poder do testemunho a América poderá voltar a ser “o sonho” que muitos, dentro e fora dela, quiseram sempre realizar.
Tino de Rans, como é conhecido Vitorino Silva, poderá ser muito impreparado e não ter tudo o que possa fazer falta a um Presidente da República, mas as suas metáforas, próprias de quem pisa as ruas da sua terra, ouve histórias e se mistura com todos, cumprimentando-os e chamando-os por nome, são uma riqueza totalmente inalcançável para quem, como ele contava, em dias de muito frio, sai do seu gabinete quente, para entrar num confortável veículo, e subir novamente pela garagem para um outro espaço, onde só se pode estar em mangas de camisa.
A situação socioeconómica em Portugal é dramática, da saúde dos mais idosos, ao futuro dos mais novos. O peso de uma eventual futura recuperação será duríssimo sobre os ombros de uma classe média, e de quem deixou há muito de pertencer a qualquer grupo, dada a sua injusta e desumana miséria. Confinar é a palavra de ordem que se ouve em cada esquina. E é deveras fundamental que o número de contágios diminua rapidamente, e os hospitais se poupem à catástrofe que já os percorre. Mas igualmente crucial é a partilha do que somos e temos, como quando em tempos de guerra, cada um, a começar por quem mais tem, é chamado a colocar à disposição do bem comum o que tem de mais seu.
A este chamaria, não Estado de Exceção, mas Estado de Graça.