Sempre refleti a morte. Esta realidade, comum à vida de todos os seres viventes, sempre fez parte das questões com que me fui e vou construindo na relação com o mundo. E ao contrário da angústia e do pavor que esta frequentemente provoca nas pessoas que a pensam ou vivem a sensação da sua proximidade, continuo a imaginá-la como um momento de indizível prazer e beleza, como se a vida, na morte, não fosse mais que uma verdadeira e silenciosa explosão de alegria e liberdade. Mas talvez estas, como outras hipóteses, sejam mais fáceis de entreter, quando a experiência da morte dos outros nos é distante.
A recente morte da minha mãe levou-me a um encontro com um corpo sem vida que já não vivia, como experiência próxima, há pelo menos 30 anos, aquando da morte do meu pai. Saber de uma mãe cheia de vida, alegre, bem-disposta, divertida e tão cheia de ternura, e vê-la depois ausente num corpo completamente frio, imóvel, rígido, deserto de qualquer consciência ou sentir, é simplesmente avassalador, desconcertante. Habituados a tê-la sempre connosco, em casa, nas nossas conversas, na comunhão da mesa, em preocupações e momentos de lazer, e deixar de a sentir, é deveras uma dor extremamente perturbadora. Mas ainda mais desesperante, como possibilidade, é a injustiça daquela vida exemplar de mulher, esposa e mãe poder nunca mais voltar a encontrar-se.
Longos anos de pesquisa têm-me levado por caminhos bem para lá do ideológico de tradições religiosas. O que o universo possa conter ou não de eterno é algo que me apaixona como possibilidade, ainda que sobre o que presentemente se afigura como “impossibilidade”, não consigamos dizer senão um ‘peut-être’, um ‘perhaps’, um “talvez”, que não nega, nem afirma um “futuro absoluto”, podendo este mesmo ser de justiça, de paz ou do que lhes possa ser contrário. A experiência da morte da minha mãe, o peso deprimente do luto que há tanto não vivia, não só me levaram a abraçar a dádiva da sua total entrega, presente no corpo com que a viveu – agora vazio do sopro que sempre lhe deu vida – como a não aceitar que aquele possa ser o seu derradeiro fim. Nunca postulei a ideia de uma justiça futura à luz da sua necessidade, da atrocidade cometida nas relações entre terrestres. Existindo, a Justiça para todos será causa de si mesma, não se fazendo depender de nada, de ninguém. Quero mesmo assim acreditar, sem ter que imaginar alguém distinto de nós, que será da natureza que geme com as dores do parto, do abandono sentido no alto da cruz, que aqueles que hoje nos foram levados da nossa presença, voltarão à nossa companhia, libertos de qualquer tipo de jugo deste ou de qualquer outro mundo. A contingência, de que somos feitos, saberá ser justa, um dia!
São milhares, também em Portugal, as pessoas, sobretudo idosos, que morrem sozinhas nos hospitais. A dor que um impossível acompanhamento à distância provoca é simplesmente incapacitante. Podemos imaginá-la ao ouvirmos relatos de milhares de episódios nos meios de comunicação. Mas quando esta situação acontece com a nossa mãe, quando os últimos dias de vida de quem nos é incondicional e eternamente querida não eram de todo os de uma cama de hospital, sem visitas, a realidade toma o lugar de qualquer ficção. Agora pensemos nos idosos com demências ou alzheimer, na total perda de contacto com as suas habituais rotinas, os seus ambientes, as suas refeições e guloseimas, as pessoas que estavam permanentemente na sua presença, com mimos, brincadeiras, beijos, abraços. De que morte falamos, quando esse momento chega sem que as mãos se apertem, os olhares se toquem, e se tenha alguma terra, um aconchego firme debaixo dos pés?
Se alguém tivesse ainda dúvidas sobre o que pensar, fazer, como viver, passado um ano da pandemia, e de regresso ao tempo litúrgico da Quaresma, creio que, nos nossos confrontos, a realidade à nossa volta é bem clara, pois não clama, no aqui e agora, senão por empatia, compaixão e solidariedade por quem vive ainda, e por Justiça para todos, no corpo que regressa ao pó da terra, de onde nasceu.