Desde a bandeira na Lua até às imagens por satélite que mostram um estaleiro em Xangai a construir o terceiro porta-aviões do país, os sinais da ascensão da China a superpotência multiplicaram-se nos últimos meses de 2020, ano que, ironicamente, começou muito mal para o gigante asiático, pois a Covid-19 surgida na cidade de Wuhan até afetou as celebrações da chegada do ano do Rato no calendário tradicional chinês.
Desses sinais positivos o mais importante é a previsão de crescimento do Produto Interno Bruto (PIB), 1,9 por cento, número fraco por comparação com o que tem sido regra nas últimas quatro décadas, mas na realidade impressionante, pois em ano de pandemia, a China acabou por ser a única grande economia com um desempenho positivo. E a Covid-19, doença que começou por ser conhecida por “vírus chinês” mata hoje muito menos na China do que na Europa ou nos Estados Unidos da América (EUA).
São muitas pois as razões para a liderança chinesa estar otimista para 2021, Ano do Boi. E, com a Covid-19 controlada para já, não há razão para o centenário do Partido Comunista Chinês, a 23 de julho, não ser um momento de afirmação de Xi Jinping, que acumula os cargos de Presidente da República e de secretário-geral do PCC, e é considerado o líder mais poderoso desde Mao Tsé-tung.
“O PCC é fundamental para compreendermos a história da China e do mundo no último século. O seu centenário é um marco e, para o regime chinês, uma oportunidade de ouro para se autolegitimar, interna e externamente, promovendo o ‘papel dirigente do partido’ na recuperação do ‘século das humilhações’ e no desenvolvimento económico, na unidade e na afirmação internacional da China. E como 2021 ocorre em plena ressurgência e nova centralidade da China, o Partido–Estado aproveitará quer para exibir o seu modelo de ‘socialismo de mercado’ de ‘democracia’ com características chinesas, quer para reforçar a sua ideia de ‘nova era’ na política internacional”, afirma Luís Tomé, diretor do Departamento de Relações Internacionais da Universidade Autónoma de Lisboa.
Acrescenta o também diretor do Observare – Observatório de Relações Exteriores que “o centenário do maior partido do mundo é para Pequim, todavia, apenas o primeiro dos ‘dois centenários’ com que referencia o ‘sonho chinês’ de fortalecimento do ‘poder nacional abrangente’, o outro é o da RPC, em 2049, centenário esse em que os dirigentes chineses esperam que a China, sempre sob comando do PCC, esteja isolada no topo da pirâmide do poder mundial”.
Para atingir o topo da pirâmide na hierarquia das potências, a China tem ainda, porém, de ultrapassar os EUA. E apesar do milagre chinês, que o regime gosta de datar de 1949, quando Mao proclamou a República Popular, mas que só começou com Deng Xiaoping no final da década de 1970, a vantagem americana ainda é grande em algumas áreas, basta pensar que a bandeira chinesa chegou à Lua 50 anos depois da dos EUA e que o terceiro porta-aviões a caminho terá de desafiar uma frota de uma dezena. Por isso a questão do PIB é tão vital, pois só crescendo muito mais rapidamente do que a América a China pode ambicionar ser a número um, reconquistando a posição que foi a sua quase sempre ao longo da história até meados do século XIX, quando a dinastia Qing começou a produzir imperadores fracos, incapazes de se oporem a uma semicolonização pelos europeus (foi quando os britânicos conquistaram Hong Kong).
É um dado adquirido que o crescimento chinês previsto para 2021 de oito por cento será de certeza superior ao americano, pois Joe Biden herda de Donald Trump um país afetado pelo “vírus da China” que o Presidente derrotado nas eleições de novembro passado referia sempre, parte da sua estratégia de confronto com Xi. Essa competição entre a candidata a superpotência e a superpotência tradicional vai continuar a marcar os próximos tempos, mesmo com a mudança de Presidente na América, concordam todos os analistas.
“Trump conseguiu demonizar a China ao ponto de transformar o Império do Meio no novo Império do Mal. Em consequência, Biden herda o único dossier que une democratas e republicanos. Não quer e não pode desperdiçar esse precioso capital político, como deixou claro no artigo que assinou na Foreign Affairs. Joe Biden e Xi Jinping conhecem-se bem e são ambos políticos resilientes. Quando, em 1970, Biden assumiu o seu primeiro cargo público, ainda Xi, com apenas 17 anos, cumpria ‘serviço comunitário’ maoista nos campos da China. Xi tentou ingressar no PCC nove vezes, sem sucesso. Biden falhou por duas vezes a nomeação do partido para a Casa Branca”, explica Luís Cunha, autor de livros como ‘Hora do Dragão – Política Externa da China’.
O investigador do Instituto do Oriente-ISCSP sublinha ainda que “”a nova administração vai recuperar o diálogo diplomático e o multilateralismo, mas não haverá regresso à política condescendente de Obama face à China. A temperatura poderá baixar, mas não a pressão sobre o mais poderoso rival geopolítico que os EUA tiveram pela frente até hoje. Por outro lado, a pandemia parece ter acelerado a afirmação da China no campo económico e militar, na ciência e tecnologia. A bandeira chinesa chegou à Lua. É que a China é também o Império dos Signos”. Os tais sinais de ascensão, com Xi, mesmo dizendo-se um fervoroso revolucionário, a ter como exemplo Qianlong, o último dos grandes imperadores chineses, capaz em 1793 de tentar humilhar o embaixador britânico exigindo que este se prosternasse para o cumprimentar (Lord McCartney recusou e a vingança britânica aconteceu meio século depois, com a guerra que permitiu ocupar a ilha de Hong Kong).
Sucessores do Império Britânico como potência dominante, os EUA sentem alguma dificuldade em lidar com a competição da China, pois, ao contrário da União Soviética no tempo da Guerra Fria, esta até se pode proclamar comunista mas usa o capitalismo para atingir os seus fins. E procura, mesmo jogando com as mesmas armas económicas, apresentar um modelo alternativo ao mundo, pois somado aos planos comerciais de Uma Faixa, uma Rota vem a promoção de um sistema de liderança autocrática. E o assalto em inícios de janeiro ao Capitólio em Washington, por apoiantes de Trump que contestam a derrota nas urnas, até serviu a Pequim para denunciar fragilidades na democracia americana.
Para José Carlos Matias, jornalista baseado em Macau, tudo, em política externa como interna, contribui para fazer de 2021 um ano de viragem para a China: “O ano inicia-se com uma nova presidência em Washington. Permanecem dúvidas sobre o quão diferente será a abordagem da administração Biden face a Pequim comparando com Trump. Analistas esperam uma continuidade na rivalidade comercial e tecnológica,
ao passo que poderemos testemunhar um outro tom da diplomacia norte–americana. Após um ano de 2020 marcado por uma escalada de tensões com vários países ocidentais em torno de questões como Xinjiang ou Hong Kong, Pequim desejará um 2021 diferente”.
Prossegue José Carlos Matias: “Internamente, 2021 poderá comprovar a solidez da recuperação da economia chinesa pós-Covid-19. O modelo de ‘circulação dual’ de maior aposta no consumo interno tem gerado frutos que permitiram um rápido regresso ao crescimento económico. A ‘diplomacia da vacina’ também desempenhará um papel de grande relevo. Para Pequim é importante que haja recetividade e confiança nas vacinas que está a produzir”.
Por último, sublinha o diretor da revista Macau Business, “2021 é o ano do Centenário do Partido Comunista da China, uma efeméride que será assinalada com pompa, circunstância e afirmação da missão histórica do partido e a projeção das virtudes do modelo chinês. A centralidade do pensamento de Xi deverá sair mais reforçada”.
De olhos postos pois neste 2021, também Ano do Boi, em Xi e na relação com Biden. O mundo, mas sobretudo os aliados da América na Ásia Oriental, do Japão à Austrália, passando por essa democrática ilha de Taiwan que o Presidente chinês não renuncia a ameaçar contra veleidades de independência formal e a trazer de volta à grande mãe pátria, como aconteceu a Hong Kong e Macau, cuja devolução foi negociada na era Deng.
Texto: Leonídio P. Ferreira, jornalista do DN