A recente viagem do Papa Francisco ao Iraque recebeu inúmeros comentários. Sem representantes à altura de cada povo, tanto a nível nacional como internacional, a atitude do Papa foi tida como exemplar e corajosa. Vacinado, é certo, contra o vírus da pandemia, o Papa podia mesmo assim justificar o seu confinamento no Vaticano com base na sua idade e no alto risco que a viagem poderia representar, quer a nível da sua segurança pessoal, como da segurança e saúde do povo iraquiano. Mas enquanto líderes do mundo inteiro permaneciam seguros e protegidos nos seus confortáveis e acastelados lugares de poder, o Papa, sem receio algum, decide ir ao encontro do povo iraquiano, levando consigo o sonho de uma fraternidade global. E foi nos escombros deixados ainda pela invasão do Iraque, pela guerra civil, que o Papa foi erguendo a sua tenda para, com líderes de outras confissões religiosas, falar de origens comuns, apelar à paz e a uma convivência de cooperação entre todos.
Para além do que as análises terão conseguido descortinar e enfatizar da viagem, dos lugares visitados, dos gestos e dos discursos proferidos, há uma questão que reguarda o diálogo inter-religioso que me parece importante aqui explorar.
O encontro e a cooperação entre diferentes fés, a bem de uma coexistência pacífica local e universal, parecem sobrepor-se ao que no interior de qualquer “Revelação” possa ser razão pela qual uns se separam dos outros, se combatem, se excluem ou se convertem. Ao sair de si, indo na direção de um outro, num movimento que tem perpetuado no tempo o “Ide” evangélico, o Papa não renuncia à “Trindade” cristã, mas coloca-a em segundo plano, ou se quisermos, dilui-a no seu próprio testemunho. O anúncio da “Boa Nova” passa sobretudo a ser o do exercício do “amor fraterno”, sendo de facto, na relação com a fé e a esperança, não só o que é mais importante, como o refere o apóstolo Paulo, mas também o que possa alguma vez definir a realidade de “Deus”. Para além de quem possa ser profeta ou parente de “Deus”, a “Caridade” entre não só os humanos, mas entre todos os seres que compõem a terra, afigura-se como uma experiência e uma prática crucial à sobrevivência de todos. Se nas palavras do pensador francês, Jean-Pierre Dupuy, evitar o extermínio humano é a nossa maior missão, então, só o diálogo e a cooperação, o seu anúncio e testemunho, nos poderão livrar do abismo.
Se sobretudo em séculos passados, a crença em “Deus”, na sua “Revelação”, podia facilmente, e sempre em oposição a esta, dispensar o imperativo da fraternidade, da justiça, do amor ao próximo, ignorando precisamente que num ambiente sem estes, o crente é simplesmente um mentiroso, e “Deus” realidade ausente, impossível, hoje, sem que se confunda com qualquer tipo de tolerância ou condescendência, acreditar só pode significar amar. E que só quem ama poderá verdadeiramente testemunhar o que possa acreditar, referindo-se a “Deus”.
O que a “Trindade” ou outras visões sobre o “divino” oferecem ao amor é um sentido ou um propósito maior. Sobreviver, evitar o abismo, deixa de ser uma realidade fechada em si, para ser um testemunho aberto a um “futuro absoluto”. Tanto no Cristianismo, como no Judaísmo e Islamismo, o amor vive da alegria de um caminho que se faz e se percorre na direção de algo “Mais”, sendo esse “Mais” não necessariamente um outro lugar, uma nova dimensão, mas o antagonismo, a pedra angular, a do sapato, intrínseca ao abraço dado ao outro, sendo também seu futuro.
Aos cristãos do Iraque, eliminados, derrubados, perseguidos, o Papa não pediu vingança, nem uma prestação de cooperação ressentida, rancorosa. Esvaziado, como Jesus na cruz, de qualquer argumento, supremacia ou absoluto, que não fosse o “Amor”, o Papa não relativizou o Cristianismo, apenas o traduziu no que de facto tem de essencial: viver, dando a vida pelos irmãos.