Os últimos eventos político-económicos (caso Marquês), jurídicos (o caso George Floyd, nos Estados Unidos) e desportivos (Superliga Europeia) vieram pôr ainda mais a nu uma crise crescente na sociedade, causada pela carência de valores que, no meu ver, mostram o quão doente está ela e muitos de nós, em especial a nossa sociedade ocidental. Como Igreja, não podemos ficar indiferentes a estes temas, tentando fazer uma associação com a nossa missão, se bem que também estejamos em crise, não só por causa de problemas que se arrastam há anos (como o da pedofilia e as atribuladas mudanças no Vaticano, entre várias outras que, de vez em quando, vêm à ribalta), como pelas consequências e efeitos da pandemia na vida da Igreja. Quando ela começou, eram vários os que diziam, convictos, de que ela iria ajudar a humanidade a reconhecer a necessidade de ser melhor, mais unida e solidária; porém, passou mais de um ano e estes desejos continuam a ser o que eram inicialmente: meros desejos! Certo, eles são importantes, porque devemos acreditar num futuro melhor, se bem que a atual situação mundial e nacional nos ofereça muitas razões para estarmos preocupados, hoje e no futuro próximo. A carência de valores veio agudizar-se com a carência de paridade no acesso a vacinas, a apoios estatais e comunitários, com a carência de mais harmonia nas famílias, mais empatia e solidariedade, entre outras formas de carência, algo que depois se reflete nos comportamentos sociais, sobretudo na carência de proximidade nos idosos e mais jovens e na carência de estabilidade psicológica e emocional. Da parte da Igreja, a carência de esperança começou a tornar-se mais intensa com a preocupação relativa à falta de fiéis nas igrejas, de crianças na catequese e de outras atividades pastorais. Não hajam dúvidas de que temos pela frente um enorme desafio; a Jornada Mundial da Juventude tem aberto uma janela de oportunidade muito importante para animar os jovens, mas há muito a fazer e refazer, sobretudo no que toca à catequese e outras modalidades pastorais, de modo a combater o comodismo que se instalou entre muitos, sobretudo com a “ajuda” das redes sociais e outros meios de comunicação, com a ideia de “comunidade” sendo substituída, em vários casos, pela fé vivida no foro individual.
Certo, a esperança de que a pandemia desperte e/ou reforce em muitos a ideia de “igreja doméstica” foi também alimentada, mas esperemos que este “barco em que todos navegamos pelas águas tumultuosas da incerteza” seja capaz de chegar a “porto seguro”. Como e quando chegaremos a este “porto seguro” tem sido, no meu ver, uma preocupação premente e necessária, pois o abalo enorme que a pandemia tem dado a todos os setores da sociedade afeta também, naturalmente, a Igreja. Convém, porém, não esquecer de que somos todos Igreja e, obviamente, devemos pensar nas mudanças de atitude que, da nossa parte, são necessárias para continuar a sermos discípulos de Cristo, bem como “sal e luz do mundo”, capazes de discernir quem precisa do sal da nossa amizade, da nossa solidariedade, da nossa presença e fraternidade, bem como da luz da esperança, da empatia e da consolação. Ninguém esperava que algo de semelhante pudesse acontecer, mas a verdade é que aconteceu: toca a nós, como sociedade, indivíduos e cristãos resistir à tentação do esperar uma “bazuca divina”, pois, como diz o ditado, “Deus ajuda quem se ajuda”. Arregacemos as mangas e sejamos, à medida que vai sendo possível, próximos do nosso próximo, sobretudo dos que mais sofreram e sofrem com esta pandemia; que a nossa fé se manifeste mais ativa e criativa no meio de tanta incerteza e medo, porque somos de Cristo e, como tal, devemos ser “Evangelho vivo” para todos à nossa volta.
Creio que, mais uma vez, a Igreja é desafiada a ser “fermento que leveda a farinha” da sociedade, através dos meios que têm à sua disposição, não só materiais, mas, acima de tudo, humanos. Sejamos mais humildes e atentos ao próximo, a quem Deus nos envia diariamente como “alimento que dá vida” e combate as carências do corpo e da alma.