Este não é decididamente um país para gente honesta. Se já não o era para quem é pessoa idosa, criança indefesa, agora também temos absoluta certeza, que quem procura realizar e viver os seus sonhos, por cá, sendo justo e verdadeiro consigo mesmo e com os outros, não só encontra insuperáveis dificuldades, como não consegue, no final, viver minimamente bem. Não sei se o justo paga pelo pecador, como experiência ou dado de facto milenar, mas quando a regra é a corrupção, a malvadez, a mentira, a desonestidade, o abuso de poder, a exceção será sempre, na engrenagem, a areia que é urgente neutralizar, ostracizar, eliminar. E quando 60% das pessoas em situação de pobreza trabalham, esta não é que uma estratégia que vai gradualmente trucidando a honestidade entre nós. A miséria gera mulheres e homens desonestos.
Estamos na primavera, e era de facto minha intenção, de olhos ainda no Dia da Terra (22 abril), cantar a vida, tecer um hino à alegria pela voz e sonoridade de tudo quando por cá se ouve de verdadeiramente belo, ecoando por todo o universo. Mas uma pessoa minimamente comprometida com o que passa à sua volta, não pode simplesmente ignorar ou ser imune ao que acontece. Há quem reflita e relativize o estado da nossa justiça, da relação criminosa entre poderes, setores, dizendo que este é um tempo de transição, inevitável, quem sabe, necessário, para que uma outra realidade, eventualmente mais justa, possa emergir. Ao evoluir científico-tecnológico, no que tem certamente de positivo, nunca correspondeu uma transformação ético-moral do comportamento humano. Diz-se mesmo, num quadro de desastre ambiental, que a terra, com todos os seus outros seres, estaria bem melhor sem a espécie humana.
Os apelos de quem, apesar de tudo, nunca desistiu da humanidade, ouvem-se repetidamente, mas estamos longe, nesta intervenção, de sermos nós mesmos a mudança com que sonhamos, quando falamos de um mundo melhor. As nossas estruturas, a começar pelas nossa casas, sofrem dos mesmos males com que sempre se vestiu o que se tem por res publica. E ainda que o privado e o público se pensem em separado, como dois mundos completamente distintos, que se devem proteger de uma recíproca ingerência, a verdade é que não o são. Mas não o são porque permeados pelos mesmos males e vícios, mas porque um homem honesto nunca faria ou diria em privado o que não pudesse ser igualmente público. Aqui, no atual contexto, o que os une é a desonestidade, aquela que, no final, fragiliza todo o apelo bem-intencionado.
É embaraçante dizer-se que, no atual regime constitucional, a criminalização do enriquecimento injustificado é inconstitucional. Que Constituição é esta, que Estado de Direito é este, que não só torna difícil o combate ao crime, como ainda o impede?! Ninguém se iluda com as origens de toda e qualquer Constituição. Ela não é certamente voz imparcial de alguém de um outro planeta. Nas vésperas de mais um 25 de abril, é bom que se diga que a Constituição Portuguesa foi feita por homens, e por homens com os seus interesses. Não se esfarrapa, não se revê dia sim, dia não, mas também não deve ser intocável garante de direitos e deveres de um contrato social ao serviço de quem, disfarçado de democracia, controla, abusa, rouba, explora, possui o que devia ser de todos, e incluir todos.
Os tempos que correm não exigem remendos. A pandemia, como qualquer tragédia com globais proporções, exige muito mais que remendos. Este não é certamente o tempo de remendar o que é velho, tendo este já dado inesgotáveis provas de que não serve.
Diante da arrogância do seu pai, que lhe atirou à cara que também era seu o que trazia vestido, Francisco de Assis, não hesitou: despiu-se do que o ligava ainda a um mundo de opulência, para se viver a partir da sua própria desconstruída nudez, e ser assim credível, honesto, coerente, transparente, livre.