Nas últimas semanas tem havido menos relatos de violência a chegar de Cabo Delgado, onde desde 2017 grupos armados supostamente jihadistas atacam as populações, mas tal não significa que a situação esteja a melhorar no norte de Moçambique, como alerta o académico Lourenço do Rosário: “Neste momento estamos a atravessar o período das chuvas sazonais em Moçambique, o que de certa forma, em termos militares, faz que notícias sobre eventuais combates no terreno tendam a diminuir, por causa da mobilidade das forças no terreno. Por outro lado, há um discurso oficial dos dirigentes das forças de Defesa e Segurança da República de Moçambique que nos dá notícia de alguma estabilização em alguns distritos até há pouco críticos. Pessoalmente, considerando as narrativas que se produzem à volta de um problema como o do terrorismo em Cabo Delgado, considero ser importante reparar no seguinte: o distrito de Mocímboa da Praia continua ocupado pelos terroristas, os funcionários públicos têm-se manifestado contra as exigências do governo para o regresso aos postos de trabalho nos distritos que as autoridades consideram fora do perigo terrorista e as populações deslocadas estão a ser reassentadas em outros distritos da província de Cabo Delgado, mas também nas províncias de Niassa, Nampula e Zambézia. Estes são dados que não devem ser ignorados para a situação crítica que a província vive e que não pode de forma alguma levar-nos a olhar para a narrativa oficial como objetivamente absoluta”.
Com 31 milhões de habitantes, Moçambique tem cerca de um terço de muçulmanos, mas na província de Cabo Delgado essa proporção inverte-se e cerca de dois terços da população segue o Islão. Ativos desde 2017, e em 2019 recebendo o apoio do Estado Islâmico ou Daesh, que chegou a dominar áreas da Síria e do Iraque, os grupos armados que atuam em Mocímboa da Praia usam a religião para atrair simpatias. Como destaca o fundador da Universidade Politécnica, “os estudos efetuados no terreno mostram que os integrantes dos grupos terroristas são, por um lado, moçambicanos jovens que por várias razões aderiram à radicalização, supostamente islâmica, mas que por detrás também estão questões de ordem económica e social perante as imensas riquezas que a província de Cabo Delgado possui, nomeadamente florestas, minérios e ultimamente gás e petróleo e a frustração das expectativas construídas pelo discurso oficial. Estes jovens construíram expectativas de serem integrados na cadeia de valores, na exploração dessas imensas riquezas. Não tendo sido contemplados, foram absorvidos pela economia de garimpo ilegal. As autoridades ao tentarem regularizar o sistema económico da província atuaram com medidas repressivas, o que provocou revolta. Por outro lado, a necessidade de concessão de terras às grandes companhias de exploração de gás e petróleo provocou um conflito no processo de reassentamento das populações. Tudo isto tornou o ambiente da província de Cabo Delgado explosivo. Assim, acredito que as forças estrangeiras encontraram um terreno fértil para desenvolverem as suas atividades de incremento do terrorismo. Considerando a evolução da perícia militar que os terroristas demonstraram em três anos acredito que estes jovens tiveram de ser formados por forças estrangeiras”.
O Islão moçambicano é tradicional, mas houve nas últimas décadas a chegada de uma corrente salafita, mais conservadora, trazida por moçambicanos que estudaram na Arábia Saudita. Essa pregação salafita pode ter ajudado a preparar o terreno para as evoluções mais recentes, que já incluem, nas fileiras jihadistas, tanzanianos, mas também quenianos e até somalis. O resultado são certamente mais de mil mortos e 20 por cento dos 2,6 milhões de habitantes de Cabo Delgado obrigados a fugir das aldeias.
A coberto da questão religiosa, há uma componente criminal também, que tem que ver com as riquezas. Isso mesmo sublinha Lourenço do Rosário, ao explicar que “Cabo Delgado faz parte de um território que antes da sua colonização já integrava uma região instável e conflituosa, conhecida por Costa Suaíli, que vai desde o corno de África até ao sul da província de Nampula. Ao longo da história, foi sempre um território de vários tráficos: marfim, escravos e recursos naturais. Muitas crónicas relatam, mesmo antes da chegada dos portugueses, factos que demonstram a instabilidade desta região. Por isso, não é de estranhar que este território esteja referenciado internacionalmente como sendo detentor de grandes riquezas que interessam ao tráfico internacional”.
A imprensa internacional, que pouco a pouco começa a dar atenção a Cabo Delgado, tem falado de mafias chinesas e vietnamitas envolvidas no tráfico de marfim e de madeiras preciosas.
Sobre a oferta feita em fevereiro pelo Presidente Filipe Nyusi, de proteção aos jovens que abandonarem os grupos violentos, o académico relembra que “o governo de Moçambique tem ensaiado várias alternativas de solução para o problema da instabilidade na província de Cabo Delgado. Naturalmente que o atraso na perceção da gravidade da situação faz que os passos que o governo tenta dar sejam considerados uma corrida contra o prejuízo. Não havendo um interlocutor identificado para com ele encetar um diálogo e tentar perceber as razões que estão por detrás desta violência, torna-se difícil saber quem são os destinatários dos vários pronunciamentos do Presidente. Contudo, o governo possui dados suficientes, quer do ponto de vista da inteligência militar, quer do ponto de vista da operacionalidade das forças militares, quer do ponto de vista social e económico, para poder traçar uma estratégia mais consistente que possa, a prazo, dar início à diminuição da alta conflitualidade que se vive na província. As ofertas que o Presidente Nyusi dá, de proteção aos jovens que abandonarem os grupos violentos, pode ser o indício de que alguma estratégia está a ser pensada ao mais alto nível”.
Cada vez mais denunciado a nível internacional, com vozes como a chilena Michelle Bachelet, comissária da ONU para os Direitos Humanos, a juntar-se ao ex-bispo de Pemba, Luiz Fernando Lisboa (que entretanto voltou ao Brasil) no alerta sobre o que se passa em Cabo Delgado, uma intervenção internacional começa a ser discutida. “Todo o envio de tropas estrangeiras para um país que enfrenta dificuldades militares tem de ser lido de diversas formas: primeiro, o país quando pede ao estrangeiro o envio de militares, significa que reconhece a sua incapacidade de resolver o problema; segundo, a presença de tropas estrangeiras num determinado território mitiga a soberania nacional e, muitas vezes, acaba por se tornar um elemento que pode agravar a instabilidade; terceiro, os pedidos de auxílio militar podem ser bilaterais ou multilaterais. Os bilaterais têm o ónus da submissão operacional do exército nacional ao exército do país que vem ajudar, o que não é bem aceite. Os multilaterais são geralmente enquadrados pelo agrupamento dos países da região ou pelas Nações Unidas ou mandatários de outras organizações internacionais que aceitam auxiliar o país que solicita. Contudo, o carácter multifacetado das forças multilaterais não tem surtido efeitos positivos no que diz respeito às questões operacionais e a presença de tropas estrangeiras num território produz danos duradouros. Por isso, Moçambique tem demonstrado grande cautela, para evitar consequências nefastas a posteriori. Isto não quer dizer que, se vier a considerar que as suas forças de defesa e segurança por si só não são capazes de vencer o terrorismo, possa descartar de todo um pedido de auxílio militar internacional”, nota Lourenço do Rosário, a figura que, quando a Renamo pegou de novo em armas em 2013 e pôs em causa os acordos de paz de 1991 com o governo da Frelimo, acabou por ser no ano seguinte o mediador entre o já falecido Afonso Dhlakama e o então Presidente Armando Guebuza, por indicação de ambos, o que mostra a influência que tem este doutorado por Coimbra em Literaturas Africanas.
Sobre se Moçambique, país muito alongado e com a capital no extremo sul, é frágil perante separatismos, o atual presidente do Fórum Nacional de Revisão de Pares da União Africana tem uma opinião muito clara, passados que são 45 anos desde a independência em relação a Portugal: “O que está em causa na insegurança de Moçambique, no norte e no centro, não são questões de natureza separatista. Paradoxalmente, apesar de Moçambique ter um território de configuração geográfica complicada e possuir dentro do seu território uma população composta de muitas etnias e muitas línguas, a sedimentação do sentimento de unidade nacional, desde o processo da Luta de Libertação Nacional e do período revolucionário que desencadeou a guerra civil de 16 anos, tem vindo a demonstrar que o separatismo não é uma questão a considerar perante a insegurança e os conflitos que decorrem neste momento”.
Em meados de março, perante os deputados em Maputo, o primeiro–ministro de Moçambique, Carlos Agostinho do Rosário, garantiu que a estabilidade estava “gradualmente” a voltar à província de Cabo Delgado, mas admitiu que o impacto do terrorismo persistia na região.
Texto: Leonídio Paulo Ferreira, jornalista do DN