Acontecimentos das últimas semanas levaram-me a desejar parar a História.
Não é a primeira vez que defendo, face à brutalidade violenta entre humanos, que porventura, só talvez através de um momentâneo apagão, como se cada uma das mais de 7 mil milhões de pessoas tivesse acabado de nascer, fosse possível coabitar e colaborar tranquilamente.
É que quando nos encontramos, nos sentamos à mesa para conversar ou negociar, cada um de nós é depósito-portador de um passado-presente, frequentemente impeditivo de qualquer tipo de entendimento. Em vez do diálogo desarmado, de olhos nos olhos, a argumentação, numa afirmação e defesa de razões, é o desolador cenário de tantos dos nossos dias, em que nos cruzamos com alguém.
Sinto, por conseguinte, que precisamos de calar a política, a religião, a cultura, a informação, a ciência, a tecnologia, a identidade, o direito, no fundo, tudo o que nos compõe, para nos pensarmos e construirmos a partir do que, no imediato, pela experiência do próprio nascimento, temos em comum: a nossa terrestrialidade e com ela, como única forma de socialização entre todos os terrestres, com a terra, o intrínseco imperativo da coabitação.
A situação sinalizada, sem ser nova, em Odemira, a inconcebível, repetitiva guerra entre israelitas e palestinianos e o arremesso criminoso de milhares de jovens migrantes, como estratégia de denúncia, conquista e colonização de territórios – entre outros comportamentos e esquemas de absoluta crueldade, dos quais, em banhos de total hipocrisia, políticos, comentadores, e a opinião pública, no geral, dizem envergonhar-se – têm por detrás uma particular compreensão de nós mesmos, sendo ela mesma, com elevadas doses de malvadez, sua razão.
Mas por mais que deseje, pelas melhores razões, uma verdadeira perda de memória coletiva, por algum tempo, tal não é possível, como sei, ainda que o fosse, que muitos discordariam dela mesma, em nome de uma particular racionalidade, muito parecida com a que há uns tempos contestou uma alvitrada suspensão da democracia.
É obvio que não é possível calar a História, como não é possível nascer duas vezes, mas insisto, mesmo assim, na necessidade de um exercício de “esvaziamento de nós mesmos”, no encontro com o outro, pelo facto de uma coabitação colaborativa, entre pessoas e partes, se apresentar mais fácil de imaginar e construir.
Michel Foucault defendeu sempre em oposição, por exemplo, a Jürgen Habermas, que uma vida fora das “relações de poder”, que nos constituem, seria impossível. Mas talvez ambos, como alguns comentadores o defenderam, quisessem dizer coisas parecidas, quando o primeiro propõe uma não-dominadora relação com o outro, e o segundo, um exercício de comunicação intersubjetiva, em que o verdadeiro ou a verdade emergem pelo resultado desta mesma prática. A posição de Habermas tem os seus problemas, não sendo aqui o lugar para as refletirmos, mas julgo interessante, na linha do que quisemos significar com o calar momentâneo da nossa História, a ética-do-não-domínio-sobre-o-outro, como nossa única esperança, capaz de aliviar o nosso dia-a-dia da violência que o permeia, em nome das nossas particulares histórias e visões do mundo.
Sem desejar privilegiar aqui uma narrativa religiosa, e muito menos tornar confessional esta minha reflexão, o encontro entre Jesus e Nicodemos, ao colocar como fundamental à vida de cada um, um segundo nascimento, radicalmente diferente do primeiro, postula o Espírito que terá de presidir sempre ao encontro de si com si mesmo e com os outros, sendo este bem diferente de uma absoluta centralidade, seja ela de que tipo for, e razão pela qual uns continuam a excluir-se, a abandonar-se, a eliminar-se, e outros não.