Na sua mensagem para o Dia Mundial dos Pobres deste ano (14 de novembro), o Papa Francisco aborda um tema que sempre intrigou posições e estratégias que acreditam que é possível, se não erradicar em absoluto, pelo menos reduzir a meros traços de si mesma, a pobreza. Digo, “intrigou”, porque a expressão: “Sempre tereis pobres entre vós” (Marcos 14, 7) foi sempre uma espécie de cínica areia, na engrenagem de quem, bem-intencionado, determinado, ainda hoje defende que os pobres podem realmente deixar de o ser, se assim as pessoas, os Estados verdadeira e seriamente o desejassem.
No seu texto, o Papa repete o que habitualmente serve de fundamento à opção preferencial da Igreja pelos pobres. De facto, o Papa não se cansa de os apresentar como o rosto do próprio Jesus, como evangelizadores, como alguém que não é externo, mas interno à comunidade, e como alguém com quem há sempre tanto a aprender, se para tal lhes for permitido participar e serem ouvidos. As palavras que os descrevem são tais, que talvez não haja, no final da sua leitura, quem não queira ser pobre. E, no entanto, não me parece que seja este o propósito da mensagem do Papa Francisco, ainda que retenha, pessoalmente, que uma reflexão sobre “Sempre tereis pobres entre vós” devesse levar a uma mais incisiva e esclarecedora nota sobre o tema.
A filosofia moderna depara-se com uma fratura que não é apenas intrínseca às coisas, à realidade como tal, mas ao que se tem por REAL (Hegel, Lacan, Žižek), sendo este antagonismo, esta diferença, a razão pela qual tudo se revela múltiplo e inconsistente (Badiou), por nada substantivo e objetivo; e a realidade, a do próprio sujeito pensante, nos pareça alienada, por não conseguir identificar-se ou ser coincidente com uma inexistente sólida essência de si. Num tempo esvaziado de absolutos, esta poderá ser, porventura, a “absoluta verdade” sobre o que existe, de que somos sem-razão, não sendo esta mesma condição sinónimo de limitação, lacuna, carência, mas infinita possibilidade de ser, sem telos, e por isso, eternamente plural e inconsistente.
Há quem hoje conteste esta espécie de beco-sem-saída, esta finita infinitização da qual se tornou prisioneira a filosofia contemporânea, e sugira um conhecimento objetivo do Real, partindo, ainda assim, de uma absoluta necessidade da contingência de que somos feitos, e da sua matematização, procurando, desta feita, vencer o correlacionismo, por mais forte ou intransponível que seja. Quentin Meillassoux é um daqueles pensadores que vê emergir do nada, como possibilidade, o mundo da Justiça para Todos, o quarto, depois do mundo da matéria, da vida e do pensamento. Neste universo, a pobreza, os pobres não existiriam de todo.
Se alguma vez vamos conseguir ter acesso ao Real fora do pensamento que o postula, creio que não o vamos saber por enquanto, o que significa que a sua procura vai continuar na génese desta infinita mobilização à produção e superação de nós mesmo, o que faz de nós seres para a mobilização (Sloterdijk). Neste contexto, mais do que uma realidade sobre a qual construir uma “habitação”, os pobres não só não podem ser uma realidade a manter viva e a gerir no tempo, como não podem constituir, no final de um caminho de emancipação, uma classe que substitui outra, nos lugares de poder. Ao contrário do que Marx possa ter sonhado, a afirmação do proletariado sobre a burguesia rica, capitalista, não se faz através da sua substituição, mas do desaparecimento de ambas as classes.
Por conseguinte, por mais romantizados, os pobres não podem ser a razão da caridade de alguém, o alicerce do seu agir. Num mundo que tenha conseguido ser justo, a bondade, a generosidade não poderão ser que o cuidado de uns para com os outros sem necessidade, sem que estas nasçam e respondam a reais necessidades.
Torna-se, pois, fundamental, que a Igreja, neste caso, e mundo no geral, entendam que os pobres não são uma realidade em estado de assistência, e a gerir, até ao fim dos tempos, através de esquemas e estratégias de alívio do sofrimento. Pela condição de tudo o que existe, precisamente porque o desejo vai continuar a ver negado o “objeto” que deseja, os pobres, tal como outra realidade entre nós, carente de justiça, dignidade e compaixão, irão permanecer entre nós, mas está na forma de ser desta mesma condição, esta continua mobilização a que, sem tréguas, se tente reduzir a sua expressão a uns ténues traços de si. “Ter os pobres sempre connosco” não pode significar que um imparável, honesto e verdadeiro exercício de construção de uma justiça sempre maior.
Aí de quem, hoje, na resposta aos desequilíbrios sociais e ambientais, se limite a fazer a sua injusta manutenção, como se os pobres fossem o caminho, e a pobreza seu eterno destino.