Na sua coluna de opinião “Não há almoços grátis”, o professor universitário João César das Neves escreve sobre o aborto.
Na sua coluna de opinião “Não há almoços grátis”, o professor universitário João César das Neves escreve sobre o aborto. Cresce a possibilidade de termos um novo referendo sobre a liberalização do aborto. a discussão no Parlamento está agendada e os jornais há muito ateiam o tema. Tudo indica que o poder político nos vai perguntar se mudámos de opinião desde 1998.
O aspecto mais chocante desta reedição é, sem dúvida, o momento escolhido. Hoje, ao contrário de há oito anos, o País vive uma crise grave, com estagnação económica, alto desemprego, fortes carências e contestações em múltiplos sectores. Iniciar nestas condições um debate sobre uma questão tão controversa e dolorosa parece loucura total.
Não é certamente por sérias razões políticas, sociais e de interesse nacional que o referendo vai ser marcado. Se tivesse sido imposto de fora, diríamos tratar-se de sabotagem inspirada por potências inimigas. Que o próprio Governo da República lance o processo é inacreditável.
Uma irresponsabilidade tão flagrante denuncia a presença do único elemento que pode determinar tal cegueira, o preconceito ideológico. Isso aliás é evidente nos argumentos apresentados. Os dois lados em debate esgrimem as suas razões, mas só um deles invoca o testemunho do progresso. Segundo os proponentes, uma das principais razões para mudarmos a nossa lei é a sua desactualização. Ouve-se com frequência dizer que esta nossa legislação é obsoleta, ultrapassada, a mais atrasada da Europa . abortar à vontade parece ser moderno.
É difícil imaginar como é que o tempo entra numa questão tão básica e perene como esta. O aborto, como o terrorismo ou o crime, não melhora com o desenvolvimento, flutua com a moralidade. Mas as marés ideológicas nunca seguem a lógica.
Há 30 anos, os defensores da economia colectivizada e planificada também se consideravam progressistas e avançados. Propor a ditadura do proletariado era então actual e dinâmico, enquanto a liberdade de mercado se mostrava antiquada e conservadora. Essa maré passou, e sabemos agora que a antevisão era não só um pedantismo intelectual insuportável mas um criminoso atentado contra a civilização e o bom senso. Os países que caíram na armadilha foram arrastados para desastres económicos de que só dificilmente ainda recuperam, enquanto as gerações seduzidas por tais ideologias se perderam debaixo dos escombros da sua tolice.
a maré mudou e agora o mesmo tipo de raciocínio passou dos inimigos da liberdade económica para os que atacam a família e a vida (que aliás são, em geral, os mesmos).com uma diferença fundamental. De facto, o sistema colectivista tinha à partida hipóteses teóricas de funcionar. as dificuldades de implantação revelaram-se insustentáveis, mas ao nível da concepção está demonstrada a equivalência potencial de resultados entre economia dirigida e descentralização mercantil. Pelo seu lado, a liberalização do aborto não tem nenhuma hipótese de futuro. Na dinâmica das civilizações, a dissolução doméstica, promiscuidade sexual e obsessão venérea são sempre sinais de decadência, não de desenvolvimento. aliás, a Europa vive já uma grave crise de valores e uma catástrofe demográfica, que lhe serão fatais na dinâmica global dos blocos. Precisamente porque a sua cegueira ideológica é avassaladora.
Um sinal disso vê-se nos jornais que, como sempre, são escravos das modas intelectuais. aliás, uma das poucas vantagens do período de referendo é que os meios de comunicação social serão obrigados a abandonar a descarada defesa do aborto, para fingirem uma imparcialidade forçada. Esse foi um dos factores que permitiu há oito anos que, silenciada a opinião pública oficial , se manifestasse a verdadeira atitude dos portugueses.
a maré vai mudar. Entretanto a alteração da lei tem um aliado perigoso: o comodismo burguês. Não faltam os que dizem coisas como: Eles não nos largam com isto, o melhor é deixá-los mudar a lei para ver se se calam. além de cobarde e cínico, trata-se de um erro clamoroso. Porque eles não se vão calar, tal como os revolucionários da geração anterior só pararam diante da catástrofe económica. Reforçados com uma evental vitória que a cobardia lhes concedesse, iriam promover outras mudanças, menos sangrentas mas mais depravadas.
Portugal em 1998 conseguiu conter a principal maré ideológica do nosso tempo. Se o aborto tivesse sido liberalizado, sofreríamos agora a confusão de temas que países próximos, com leis mais avançadas , sofrem. E viveríamos os terríveis estragos humanos que por lá se vivem.
In DN, 18 de Outubro de 2006