Fátima Missionária (FM) – O padre Albino Brás nasceu a 15 de agosto de 1965 no concelho de Alvaiázere, distrito de Leiria, e entrou para o Seminário dos Missionários da Consolata em Fátima a 6 de outubro de 1979, aos 14 anos. O que esteve por detrás desta decisão tomada no início da sua adolescência?
Albino Brás (AB) – No princípio, nem as motivações nem a decisão para entrar no seminário foram muito claras. Deus foi despertando a minha vocação através de sinais e de mediações. Serviu-se por exemplo de um missionário da Consolata que foi à minha escola, em Alvaiázere, falar das missões e da sua experiência missionária. Foi na aula de Religião e Moral. Numa ficha que nos entregou constava um elenco de profissões ou possíveis caminhos futuros de realização, como professor, médico, advogado, bombeiro, e, entre elas, estava também a de ser “padre”. Sem muita convicção, confesso, mas muito tocado pelas palavras e imagens que o padre mostrou das missões em África, coloquei a cruz naquele quadradinho. Não recordo bem, mas talvez isto tenha sido em maio de 1979. Em agosto fiz um estágio de uma semana no seminário da Consolata em Fátima, semana essa que terminou com uma entrevista com um dos padres. No mês de outubro desse mesmo ano ingressei no seminário. Foi o início de uma longa caminhada.
FM – O padre Albino estudou Filosofia, licenciou-se em Teologia em Madrid, fez um estágio pastoral de dois anos em São Paulo, e defendeu com distinção a sua tese de mestrado na área da Moral, Ética e Bioética, a qual mais tarde deu origem a um livro. De que forma é que este percurso influenciou o trabalho missionário que veio a desenvolver?
AB – A formação de um sacerdote é longa. Mas a vida sacerdotal e a missão pedem que tenhamos um amplo leque de conhecimento e experiências de vida. A identificação com o Instituto Missionários da Consolata, família onde me quis consagrar, seguiu os passos normais previstos, e sem sobressaltos. Quanto aos estudos académicos, gostei especialmente da fase de Madrid. Levei muito a sério esses anos de estudo e recordo que o meu tutor da tese de mestrado, Javier Gafo, ficou muito orgulhosos de mim, pois tive a nota máxima – 20 – na defesa da tese, e até me fez a proposta de ficar como docente numa das universidades dos Jesuítas. Como eu já estava destinado ao Brasil pela Direção Geral da Consolata, propôs-me ser professor em Belo Horizonte, onde havia vaga para um professor nesta área. Como não dependia só de mim, e eu queria primeiro fazer uma experiência forte de missão, acabei por não explorar esse campo de estudo, ainda que nos anos seguintes tenha feito várias conferências e escrito vários artigos sobre essa temática.
FM – Foi ordenado sacerdote a 20 de outubro de 1996 por João Alves, então bispo de Coimbra, num ano que foi marcado pelo falecimento do seu pai e do seu irmão. Como é que hoje recorda esse dia, num ano que foi emocionalmente tão forte para si e para a sua família?
AB – Foi muito difícil. A minha mãe tinha falecido três anos antes, e o meu pai e um irmão faleceram no ano da minha ordenação. Recordo que uma pergunta se repetia na minha cabeça: “Porquê?” Outras perguntas existenciais iam aparecendo. A tentação de abandonar tudo, também se fez presente. Senti, mais que nunca, que não podia confiar apenas nas minhas próprias forças. Deus provou a minha fé, mas não sucumbi. A resiliência, essa capacidade de superamos situações adversas, foi a palavra de ordem. Agarrei ainda com mais força a minha vontade de ser padre. No dia da minha ordenação sacerdotal foi tudo muito sentido, profundo e muito vivido. Eles estavam mais presentes que os presentes, ainda que de outra forma. E aqui estou, 25 anos depois, fortalecido pela fé e pela memória agradecida daqueles que já partiram.
FM – Esteve em missão em favelas no Rio de Janeiro de 17 de maio de 1997 a 14 de janeiro de 2005. Pode contar um dos episódios missionários mais marcantes que viveu durante este período?
AB – É difícil escolher um. O trabalho pastoral na zona norte do Rio de Janeiro, num contexto de favelas onde se encontravam as sete comunidades da paróquia da Consolata que me acolheu, e da qual depois fui pároco, foi bastante desafiador. Recém-ordenado, ali aprendi o melhor do meu ministério sacerdotal e da minha vida missionária. Ainda hoje guardo muito boas recordações desses tempos e sou muito grato a todos os que me ajudaram a dar os primeiros passos no ministério sacerdotal, e a estar atento aos apelos e necessidades pastorais daquelas comunidades. Escolho um episódio muito positivo: nas primeiras reuniões de conselho e assembleias da paróquia, notei que havia fortes divisões na comunidade, com grupos que se enfrentavam, por razões várias. Comecei a promover dois retiros anuais obrigatórios para todos os agentes pastorais e encontrámos paz. A comunidade amadureceu muito, o que me levou a perceber a importância da espiritualidade como cimento para formar comunidades de fé e de vida. Um episódio negativo foi quando alguém da IURD, uma seita também presente em Portugal, e que não aceita a veneração de imagens, especialmente de Maria, entrou de rompante na paróquia e mandou a imagem de Nossa Senhora da Consolata para o chão, deixando a padroeira da paróquia em pedaços. Indignou toda a comunidade e fez-me pensar nas consequências nefastas da intolerância religiosa. Mas podia contar tantos outros episódios agradáveis e também desagradáveis. Acredito que é nas situações de tensão que é preciso que a Igreja esteja presente, mesmo assumindo riscos para tentar anunciar a sua mensagem de paz e respeito recíproco. A Igreja deve ser sempre fiel à missão que recebeu.
FM – Entre 2005 e 2012 o padre Albino esteve ligado à animação missionária e acompanhou grupos de jovens a partir de Fátima. Que palavras de esperança e alento gostaria de deixar aos jovens de hoje, nomeadamente àqueles que se sentem atraídos pela missão?
AB – Os jovens de hoje são necessariamente diferentes da geração daquele rapazito que há muitos anos entrou no seminário e que agora vos fala. O mundo mudou muito. Os jovens de hoje cresceram num contexto de altíssimo consumo e bem-estar que torna difícil a maturação de outros hábitos. Além disso, possuem novas ferramentas para enfrentarem o mundo que os rodeia. Desenvolveram outras capacidades e outras sensibilidades também. Admiro esta nova sensibilidade ecológica, a luta pela defesa do meio ambiente, o espírito generoso… Mas noto também uma certa indiferença difusa com relação às questões da fé e do compromisso cristão. Tenho a impressão de que os jovens de hoje gostam de participar em eventos, atividades, mas depois não aderem à ideia de processo, de maturação, de continuidade de um projeto, da solidez de um compromisso, do sacrifício de uma entrega. Por isso, digo-lhes que vale a pena empenhar a vida por aquilo que os faz feliz, e se o que os pode fazer felizes é servir a Deus e a Igreja como missionário/a da Consolata, e para toda a vida, pois, em frente, sem medo!
FM – Esteve em missão no Bairro do Zambujal, na Amadora. Quais os maiores desafios que encontrou?
AB – Estive quatro anos no Bairro do Zambujal. Fui para lá em setembro de 2012, com mais dois colegas sacerdotes. Inaugurámos a primeira comunidade residente dos Missionários da Consolata naquele bairro. O maior desafio que ali encontrei foi o da multietnicidade: do diálogo e trabalho pastoral comprometido, e nem sempre fácil, entre povos de origem africana, cigana e outras. Gostei muito da comunidade que se ia formando, sob o conceito que criámos de “centro consolação e vida”, como forma de viver e celebrar a fé e a vida, à luz do carisma herdado de José Allamano e da Consolata. As instalações, pequenas e familiares, ajudaram a criar esse espírito. Saí de lá com pena minha, após pedido do meu superior regional na altura, no final de 2016, para assumir o cargo de diretor da revista ‘Fátima Missionária’ e da comunicação dos media digitais da Consolata.
FM – O padre Albino é o coordenador das ESPERE – Escolas de Perdão e Reconciliação em Portugal. Como se encontra o desenvolvimento deste projeto atualmente?
AB – Já fizemos oito cursos ESPERE, e todos com avaliação excelente. Com a pandemia, o projeto das ESPERE entrou também ele numa espécie de hibernação. É que os cursos ESPERE são presenciais, não temos uma metodologia pensada para o ambiente digital. A equipa também se dispersou, mas acredito que, reunidas as condições necessárias, podemos retomar o mais breve possível este projeto que dá um grande contributo para a Igreja e para a nossa sociedade. Muitas pessoas pedem para fazer o curso, que se faz necessário mais que nunca nos tempos que correm. O Papa Francisco costuma dizer e repetir que o perdão é fonte de alegria, de saúde. Quem não perdoa, adoece física e mentalmente. Hoje sabe-se que as pessoas que não perdoam têm maior tendência para ficarem doentes. Alimentar rancores e ressentimentos deixa marcas no nosso organismo. E nós queremos ser pessoas saudáveis! Não queremos entrar no círculo vicioso da violência. Recentemente, a revista “Time” sugeriu mesmo que o perdão se torne “viral”, apelando, num artigo assinado por Andrew Serazin, a que o perdão surja como um poderoso instrumento para lidar com a vida quotidiana num tempo em que as tensões pandémicas e políticas têm tido um grande impacto na saúde mental. Por fim, dizer também que, nesta mesma linha, fui convidado para fazer parte de um movimento internacional que é o SAPERE – Sacerdotes pelo Perdão e a Reconciliação.
FM – Atualmente em que consiste o trabalho missionário que se encontra a desenvolver em Lisboa?
AB – Imediatamente antes da pandemia deixei a direção da revista ‘Fátima Missionária’, mas continuei como colaborador. Estou na comunidade dos Missionários da Consolata nos Olivais, em Lisboa, onde me foi confiado o cargo de superior da comunidade. Com seis membros, esta comunidade é também a casa de referência da Consolata em Portugal. Por aqui passam missionários que vão ou voltam das missões e que muitas vezes precisam de tratamentos médicos, ou simplesmente descansar, recarregar baterias, estudar. Temos algumas capelanias onde celebramos diariamente a Eucaristia, colaboramos com algumas paróquias em volta, confessamos, acolhemos e acompanhamos alguns grupos na nossa casa. Por outro lado, vou continuar a promover e a realizar os Cursos ESPERE. Continuo também a produzir conteúdos para as plataformas digitais oficiais da Consolata em Portugal.
FM – Que balanço faz dos seus 25 anos de ordenação sacerdotal?
AB – Olhando o retrovisor desta caminhada de 25 anos de sacerdócio, tenho a dizer que passou muito rápido e que muitas das convicções, mas também das inquietações e algumas dúvidas que tinha no início, continuam, ainda que com outras roupagens, com outras formas de se manifestarem. Faz parte do fluir histórico. O ‘sim’ inicial preciso recriá-lo todos os dias. E ainda continuo a perguntar-me: ‘O que é ser missionário? O que é evangelizar, hoje?’ Nestes últimos 25 anos a perspetiva do que é missão mudou muito. Agora é menos geográfica e mais coração a coração. Deixou de ser apenas presencial, passou a ser também digital. É uma missão não apenas de projetos, mas sobretudo de causas: de justiça e paz, refugiados, tráfico humano, defesa e promoção dos direitos humanos, de alentar no mundo uma nova esperança. No aqui e no agora da minha história procuro encontrar-me nestas novas dinâmicas e procurar cultivar os mesmos sentimentos de Cristo, configurar-me a Ele.
A mensagem do Papa Francisco para o Dia Mundial das Missões de 2021 tem como título uma passagem do livro dos Atos dos Apóstolos: ‘Não podemos deixar de afirmar o que vimos e ouvimos’. Jesus continua vivo e deve ser anunciado. Sinto que mais de 2 mil anos depois, a proposta e a mensagem de Jesus continua a fazer todo o sentido, a apaixonar gerações. E eu também me apaixonei, e com o sentimento de que Deus acolhe e perdoa as minhas fragilidades. Porque sou humano, sou imperfeito. Mas vivo nesta tensão de procurar divinizar o humano.
Neste ano jubilar, peço o auxílio da Mãe Consolata e do beato José Allamano, fundador dos Missionários da Consolata, que dizia que a missão deve estar na cabeça, na boca e no coração. Mas sem esquecer que a missão conta também com os pés e os joelhos. É a oração que traz oxigénio à vida do cristão, do discípulo missionário, como eu me sinto. O resto vem por acréscimo. Com Edith Stein, também eu digo hoje: “Não sei para onde Deus me leva, mas sei que Ele me conduz”. Tudo é graça, tudo é dom.