As cerimónias nos EUA de aniversário do 11 de setembro, o maior atentado terrorista da história, sempre foram pesadas: além dos quase três mil mortos daquele dia a ser relembrados, também uma guerra nos confins da Ásia continuava a ser combatida para impedir que a Al-Qaeda voltasse a ter uma base para planear os seus atos terroristas, uma guerra em que morreram mais de 2400 americanos num total de 3500 militares abatidos das forças internacionais ISAF, comandadas pela NATO. Mas este ano, com a efeméride a somar já duas décadas, os discursos foram mais difíceis, pois em Cabul voltaram a mandar os talibãs, protetores da Al-Qaeda, a organização jihadista global que desviou os quatro aviões que a 11 de setembro de 2001 embateram nas Torres Gémeas de Nova Iorque, no Pentágono, em Washington, e só falharam a Casa Branca, também em Washington, porque houve revolta dos tripulantes e passageiros do voo 93 contra os piratas do ar e o aparelho se despenhou na Pensilvânia.
O regresso dos talibãs ao poder no Afeganistão traz dúvidas sobre a possibilidade de retorno também em força da Al-Qaeda, mas sobretudo deixou evidente a fragilidade do Estado democrático que o Ocidente tentou construir (gastando dois biliões de dólares) nestes 20 anos neste país de 38 milhões de habitantes, povoado por uma diversidade de etnias (pastunes, tajiques, usbeques, turcomenos, hazaras). Todas estas comunidades são seguidoras do islão sunita, com exceções da hazara, que é xiita e também se distingue por rostos de olhos rasgados, a reforçar a ideia de que se trata de descendentes dos mongóis de Genghis Khan, que no século XIII foi o último conquistador bem sucedido do país.
Nos cinco anos em que governaram o Afeganistão (1996-2001), os talibãs deixaram grandes marcas de extremismo islâmico, desde a proibição de as mulheres estudarem e trabalharem até às execuções em estádios de futebol, passando pela destruição de estátuas de Buda por simbolizarem o passado pré-islâmico. Os hazaras foram especialmente perseguidos.
Apenas reconhecidos pelo Paquistão, pela Arábia Saudita e pelos Emirados Árabes Unidos, a derrota dos talibãs no final de 2001 parecia condená-los a desaparecer da história, mas tal não aconteceu. Conseguiram sempre, tanto com apoios externos como internos, manter acesa a chama da rebelião, assumindo o papel de resistência aos invasores estrangeiros, pois boa parte dos afegãos nunca viram com bons olhos a presença da ISAF (morreram nestes 20 anos 48 mil civis, além de 66 mil soldados afegãos). E quando o Estado Islâmico, grupo jihadista criado na Síria e no Iraque, passou a contar com uma célula no Afeganistão, os talibãs aproveitaram para ser vistos como um mal menor pelos americanos, negociando com estes uma trégua e depois um acordo de retirada que não decorreu como esperado pelo presidente Joe Biden, sucessor de Donald Trump, que tinha iniciado o diálogo. Era suposto o exército governamental afegão travar os talibãs e obrigar estes a um acordo com Ashraf Ghani, presidente afegão, mas assim que os americanos começaram a sair do país, a mudança de regime foi fulminante. Os talibãs conquistaram capital provincial atrás de capital provincial até tomarem Cabul em agosto. Ghani fugiu para o estrangeiro e uma multidão de ocidentais e afegãos encheu o aeroporto da capital, ainda sob proteção americana, para escapar também. De pouco ou nada têm valido as promessas dos talibãs de não haver vinganças. E mesmo as declarações sobre um Afeganistão menos extremista do que entre 1996 e 2001 não convencem. A lei islâmica na versão talibã irá reger o país e os poucos compromissos são aceitar as mulheres a estudar desde que haja separação total com os homens.
Um governo talibã foi, entretanto anunciado. Só composto por homens e sem integrar outros setores da sociedade que não os próprios talibãs, palavra que quer dizer “estudantes de religião”. O movimento fundado pelo mullah Omar, que morreu em 2013, tem agora como líder Hibatullah Akhundzada. O primeiro-ministro do novo governo afegão é Hassan Akhund e entre os vice-primeiros–ministros está o mullah Baradar, que foi o rosto dos talibãs nas negociações com os Estados Unidos da América em Doha, capital do Qatar, e é visto como mais moderado que outras figuras. Chegou a falar ao telefone com Trump, e visitou a China, para obter o reconhecimento.
Os próximos tempos serão decisivos, pois mostrarão até que ponto os talibãs estão divididos ou não. Também se perceberá se conseguirão algum tipo de relacionamento com a comunidade internacional. Outra dúvida é se os senhores da guerra que se renderam se arrependem e pegam em armas, se bem que no vale do Panshir tal correu mal. A atitude do Estado Islâmico, que num atentado ao aeroporto de Cabul durante as semanas da retirada matou 200 pessoas incluindo 13 soldados americanos, é outra incógnita.
Na América, a população cansada de guerras e de ver soldados regressar em caixões, apoiou a retirada decidida por Biden. Mas ninguém esperava ver os talibãs ficarem de novo senhores do Afeganistão, como se os americanos, de repente, tivessem sido no século XXI as vítimas do “cemitério de impérios” como o foram antes os russos no século XX e os britânicos no XIX. As maiores vítimas são, porém, aqueles que acreditaram num Afeganistão moderno e democrático e o viram desaparecer de um dia para o outro.
Texto: Leonídio Paulo Ferreira, jornalista do DN