As pirâmides de Meroe, que datam dos séculos VIII a V a.c., testemunham a antiguidade da civilização na Núbia, no que é hoje o Sudão, país tradicionalmente muito ligado ao Egito, do qual se emancipou em 1956. Mas o próprio nome, que significa em árabe “terra dos negros”, denuncia que se trata de uma zona de transição entre o mundo arabizado, de religião islâmica, e a África negra, onde animismo e cristianismo dominam. A expressão é tão ampla geograficamente que o império colonial francês chegou a ter um Sudão, o atual Mali.
A violência recente, com os militares a mostrarem que não querem nem a democracia nem a partilha do poder com os partidos, inscreve-se bem na narrativa das duas últimas décadas de história do Sudão, sempre relacionada com ser o ponto de encontro de dois mundos. A repressão das milícias árabes Janjawid contra as populações do Darfur levaram a justiça internacional a emitir um mandato de captura em 2009 contra o presidente do país por crimes de guerra e contra a humanidade e depois também por genocídio. Pária internacional, apesar de vários países africanos recusarem entregá-lo em caso de visita, o general Omar al-Bashir mostrou estar disposto a tudo para se manter no poder, até aceitar um referendo que deu em 2011 a independência ao Sudão do Sul, mas em 2019 foi derrubado pelos seus próprios aliados militares. E outro general, Abdel Fattah al-Burhan, assumiu o poder, prometendo de início uma transição para a democracia.
Até 2011 o Sudão foi o maior país de África, com 2,5 milhões de quilómetros quadrados. Depois da secessão do Sudão do Sul, ficou reduzido a 1,9 milhões de quilómetros quadrados, passando a terceiro país do continente, atrás da Argélia e da República Democrática do Congo. Se por um lado a separação via referendo de autodeterminação permitiu pôr fim a uma guerra com décadas, por outro o novo (velho) Sudão perdeu a maior parte dos campos petrolíferos e assim complicou os recursos para o desenvolvimento. Ao mesmo tempo, a rutura entre Norte e Sul veio reforçar os defensores da tese da impossibilidade de muçulmanos e cristãos (e animistas) viverem em paz juntos, o que não é nada tranquilizador para muitos países africanos com grande diversidade religiosa, embora em alguns casos a coexistência seja pacífica.
Hoje com 45 milhões de habitantes, o Sudão passou a ser um país de clara maioria muçulmana, mais de 90 por cento da população. Os cristãos serão uns cinco por cento e a nova Constituição, redigida após o derrube de Al-Bashir, não incluía obediência à Sharia, a lei islâmica, ao contrário do que sucedia antes. Em teoria, deixaram de ser possíveis casos como o do julgamento em 2014 de uma sudanesa filha de pai muçulmano, mas grávida de um cristão que teve de fugir do país para não ser condenada à forca por apostasia. Também o consumo de álcool passou a ser autorizado para os não-muçulmanos e a mutilação genital feminina foi ilegalizada.
Desde 2019, foi feito também um esforço para resolver os vários conflitos armados que persistiam em regiões como o próprio Darfur, onde a violência voltou depois da retirada das forças das Nações Unidas. O confronto nesse caso não é por causa da religião, mas sim por oposição entre modos de vida, com as tribos pastorícias de camelos e vacas a disputarem terras com as tribos que vivem da agricultura. É também um conflito entre as tribos arabizadas e as outras, e tradicionalmente o regime de Cartum usa as primeiras para assegurar o seu controlo, o que originou há uma década as acusações contra Al-Bashir.
Em meados de novembro, quase um mês depois do novo golpe militar de 25 de outubro, os protestos populares prosseguiam, apesar da repressão já ter feito pelo menos duas dezenas de mortos. O primeiro-ministro deposto Abdalla Hamdok continua a ser apoiado pela comunidade internacional e o secretário-geral da ONU, António Guterres, conversou telefonicamente com o general Al-Burhan para o pressionar a respeitar o calendário para a realização de eleições. Também o secretário de Estado americano, Anthony Blinken, tem pressionado os militares sudaneses para resistirem a perpetuar-se no poder, não esquecendo os Estados Unidos que o Sudão nos anos 1990 chegou a alojar o saudita Osama bin Laden, chefe da Al-Qaeda e mentor dos atentados de 11 de setembro de 2001.
Apesar das terras férteis, afinal o Nilo cruza o país, e de alguns recursos petrolíferos, o Sudão surge em 170.º lugar no índice de desenvolvimento humano da ONU, com o Sudão do Sul a fazer pior, ocupando o 185.º lugar em 189 Estados, pois desde a independência também se deixou envolver em guerras tribais, com os nuer e os dinka a combaterem entre si.
Al-Burhan, que combateu no Sul e no Darfur, tem relações com as milícias Janjawid e há relatos de que estas já foram chamadas a reprimir protestos. A nível internacional, os seus apoios são o Egito, sempre atento ao vizinho do Sul, a Arábia Saudita e os Emirados Árabes Unidos. Veremos se o aconselham a voltar a negociar com os civis ou se, pelo contrário, recebe carta branca para se tornar um novo Al-Bashir, que governou entre 1989 e 2019. Al-bashir tem agora 77 anos, mas Al-Burhan só tem 61.
Texto: Leonídio Paulo Ferreira, jornalista do DN