Ao partir de avião de Bissau para a Europa a 15 de fevereiro, duas semanas depois de uma tentativa de golpe de Estado, o presidente Umaro Sissoco Embaló pretendeu dar um sinal de que se sente seguro no cargo e que a normalidade institucional está garantida na Guiné. No aeroporto, para se despedir do chefe do Estado a caminho da cimeira UE-África, esteve o primeiro-ministro Nuno Nabiam, engenheiro e líder da Assembleia do Povo Unido – Partido Democrático da Guiné-Bissau, que estava com Embaló reunido no palácio do governo aquando do ataque de dia 1 e seria também um dos alegados alvos dos golpistas, que fracassaram mas deixando um rasto de oito mortes e de novo fama de instabilidade no pequeno país da África Ocidental.
Decidido a melhorar a imagem internacional da Guiné-Bissau, antiga colónia portuguesa, desde que assumiu a presidência em fevereiro de 2020, Embaló viajou a pensar em usar a reunião em Bruxelas da liderança da União Europeia e os governantes dos 27 Estados-membros com os representantes dos 55 países da União Africana para reafirmar a sua estratégia de charme global mesmo em tempos difíceis. Além disso, no caso da relação com a Europa, a Guiné-Bissau tem o terceiro maior acordo de pescas da UE, logo a seguir à Mauritânia e a Marrocos, com grande peso na economia e no Orçamento Geral do Estado.
No balanço destes dois anos como presidente, Embaló tem feito viagens emblemáticas, como as visitas ao Brasil e Portugal e também uma à Bélgica e às instituições europeias no ano passado. E também conseguiu que Marcelo Rebelo de Sousa fizesse uma deslocação oficial à Guiné em 2021, a primeira de um presidente português em três décadas. Sua grande aliada nessa aposta de reatar laços tem sido Suzi Barbosa, a ministra dos Negócios Estrangeiros, nascida na Guiné mas que cresceu em Portugal e se formou na Universidade de Lisboa. “Pela primeira vez, a Guiné tem um chefe de Estado que realmente tem muita influência. É um homem de relações, é um homem que tem contactos a nível mundial, e o facto de ter este carnet d’adresses, como dizem os franceses, tem ajudado muito a Guiné-Bissau”, afirmou a ministra ao Diário de Notícias, em entrevista no ano passado, comentando o presidente.
Embaló, que é general na reserva, tem de facto vasta experiência de contactos internacionais, pois trabalhou para um fundo de investimento líbio e foi conselheiro diplomático do presidente Nino Vieira, o homem que mais tempo governou o país, mas que foi derrubado numa guerra civil e depois de regressado ao poder assassinado.
Poliglota (entre as línguas que fala está o árabe), Embaló estudou Relações Internacionais em Lisboa e fez um mestrado em Madrid (o espanhol é outro dos idiomas que domina). Foi ainda, pouco mais de um ano, primeiro-ministro (novembro de 2016-janeiro de 2018).
Muito continua por esclarecer sobre a recente tentativa de golpe. O que se sabe é que a 1 de fevereiro, homens armados atacaram o Palácio do Governo quando decorria uma reunião do conselho de ministros na qual participavam Nabiam e Embaló. Durante cinco horas ouviram-se trocas de tiros em Bissau, com o presidente depois a surgir são e salvo e a afirmar que tinha havido um “atentado à democracia”. O balanço inicial divulgado pelo porta-voz do governo, Fernando Vaz, apontava para 11 mortos, incluindo quatro civis. Foi depois revisto para oito mortos. Circularam imagens de corpos esventrados, tiradas por telemóvel pelos atacantes, a lembrar outros tempos, como quando Nino Vieira foi morto em 2009 à catanada horas depois de uma bomba ter morto o então chefe do Estado-Maior, o general Tagmé Na Waie. O presidente assassinado era um antigo comandante guerrilheiro da luta contra Portugal e o homem que mais tempo governou a Guiné (entre 1980 e 1994 ditatorialmente, de 1994 a 1999 como presidente eleito e depois novamente eleito a partir de 2005).
No dia seguinte ao ataque deste ano, Embaló apontou o dedo a “gente relacionada com o tráfico de droga”, subentendendo-se que se referia a militares, tendo assim o Estado-Maior das Forças Armadas aberto uma investigação, tal como o Ministério Público. Dias depois, Fernando Vaz responsabilizou um “grupo de militares e paramilitares” que teria como objetivo “a decapitação do Estado guineense, com recurso a pessoas envolvidas no narcotráfico e contratação de mercenários, rebeldes de Casamança”. O também ministro do Turismo declarou haver provas “bastantes e irrefutáveis” e alegou ligação a “certas personalidades”, sem as nomear. No dia 11 o próprio presidente já nomeava suspeitos, referindo-se ao ex-chefe da Marinha Bubo Na Tchuto e outros dois antigos militares condenados nos Estados Unidos por tráfico de droga, que regressaram à Guiné depois de cumprir penas em prisões americanas e agora voltaram a ser detidos. Durante anos a Guiné foi acusada de fechar os olhos a ser usada como escala dos narcotraficantes colombianos que enviavam cocaína para a Europa, o que só seria possível com cumplicidades.
Regressado a Bissau no dia 15, Biagué Na Ntan, chefe máximo militar que estava fora na Europa para tratamento médico quando houve a violência, afirmou, por seu lado, que os envolvidos eram reincidentes, mas optou por não nomear ninguém: “Não é nada de novo, é um ato preparado há muito tempo pelas mesmas pessoas que estiveram envolvidas noutras tentativas”.
E explicou mesmo que no passado “o tribunal disse que não havia provas, aliás, que, no meu caso particular, como não fui assassinado, não havia crime e caso tivesse sido assassinado por eles, então, aí sim, essas pessoas seriam julgadas”.
O general Biagué Na Ntan declarou ainda estar preocupado “com a falta de tranquilidade na Guiné-Bissau”, lamentando que “certas pessoas não queiram a paz” que está a ser implantada na Guiné-Bissau “nos últimos quatro anos”, ou seja antes, com José Maria Vaz, mas sobretudo depois da eleição de Embaló, o que significa estar em bons termos com o presidente, que como qualquer político guineense tem de ter em conta a opinião dos militares, herdeiros da guerrilha do PAIGC que combateu o exército colonial português.
Herdeiro também dessa guerrilha é o partido que usa a sigla PAIGC e que com altos e baixos se tem mantido influente no país e que tem mostrado dúvidas sobre o relato oficial dos últimos acontecimentos.
O seu candidato presidencial derrotado por Embaló e atual líder, Domingos Simões Pereira, expressou numa entrevista à rádio alemã Deustche Welle o seu “veemente repúdio e condenação de todas as tentativas de subversão da ordem constitucional por vias não democráticas”, mas criticou a “explicação simplista e circunstancial” do presidente, dizendo querer pormenores e saber quem foram os responsáveis.
Simões Pereira, que foi primeiro–ministro e também secretário executivo da CPLP, continua a afirmar que as presidenciais tiveram irregularidades, e por causa dessa sua contestação na época, a tomada de posse de Embaló não foi no parlamento mas sim num hotel de Bissau. Na primeira volta, Simões Pereira tinha sido o mais votado, mas o rival ultrapassou-o na segunda volta. O congresso do PAIGC que estava previsto para meados do mês passou a estar em dúvida e foi adiado para março com a situação de instabilidade vivida, o que também alimenta teorias várias sobre a tentativa de golpe e os beneficiados.
Sabe-se que tem havido tensões entre Embaló e Nabiam (como no caso do avião gambiano retido por falsa suspeita de transportar armas, com o primeiro-ministro a mandar investigar um voo autorizado pelo presidente) mas ambos estavam juntos na hora do golpe. É também conhecida a pressão internacional sobre o presidente para atuar contra o que subsiste do apoio ao narcotráfico e como Embaló, apesar da insistência americana, não extraditou ainda o ex-chefe do Estado Maior das Forças Armadas, o general António Indjai, acusado de narcotráfico nos EUA. Indjai é suspeito também de estar por detrás do golpe de 2012 na Guiné, que na época levou o país a ser pária internacional e levou mesmo ao envio de tropas da CEDEAO, organização regional que agora decidiu voltar ao país lusófono, que continua entre os mais pobres do mundo, com os seus dois milhões de habitantes a precisarem de paz para prosperar. O FMI tem feito avaliações positivas da governação e do rumo da economia, o que é bom para as ambições de Embaló, mas a dependência da exportação do caju continua muito grande e o turismo que podia ser uma fonte de riqueza não se desenvolverá enquanto houver notícias de golpes. Este terá sido a 17ª tentativa, a par de quatro bem-sucedidos, num país do tamanho do Alentejo.
O convite para a Guiné-Bissau participar na sexta cimeira UE-África serve para relembrar que os golpes têm consequências, pois só por ter falhado o de 1 de fevereiro é possível a participação. Pelo contrário, Mali, Guiné-Conacri e Burkina-Faso, com lideranças resultantes de golpes, foram excluídos da cimeira em Bruxelas.
Texto: Leonídio Paulo Ferreira, jornalista do DN