A justiça da terra para com todos reside no seu estado inapropriável. Não podendo ser possuída por ninguém, nenhum relacionamento com ela se afigura legítimo, que não seja o seu comum e responsável uso.
Walter Benjamin, intuiu isto mesmo no início do seculo XX, e alguns autores, como Giorgio Agamben (filósofo italiano), ao dissertarem sobre a justiça e a pobreza, referem-se à radicalidade da novidade apreendida por este génio alemão, sem que deixem de sublinhar o seu caráter revolucionário e o questionamento que esta desconcertante visão coloca aos nossos estilos de vida, fundados sobre o direito de propriedade.
O nosso relacionamento com a terra poderá nada ter a ver com esta condição, sendo de facto esta a grande verdade a nosso respeito, mas é importante que fique claro e que se sustenha, que qualquer forma de vida, que não resulte deste estado inapropriável da terra, não só não espelha a sua justiça para com todos, com a nega.
Ao escrever sobre este estado inapropriável do mundo, Agamben apelida o seu comum uso de pobreza, e por fim de amor. É pobre, ama, quem, para lá de qualquer ética do dever ou da virtude, procura fazer um comum uso das coisas, não esquecendo as gerações que lhe hão-de suceder. Não se trata, por conseguinte, de uma condição postulada a partir de um ato da vontade, de uma renúncia, como em Francisco de Assis, mas do que é condição de um bem. Eu não possuo, não porque não quero, porque me dou o direito de nada ter, mas porque simplesmente a terra não mo permite, e com ela, tudo quanto contém, a começar pelo meu próprio corpo, e o universo no seu todo.
Nas palavras do filósofo francês, Jacques Derrida, o melhor de nós terá de ser sempre dito, afirmado, e sempre como exemplo, precisamente porque o melhor de nós ficará sempre aquém da justiça que é da terra. O direito de propriedade, qualquer ideologia, visão do mundo, tradição religiosa, serão sempre injustos, o que significa também que a justiça não se define na resposta a necessidades e não se resolve através da distribuição da riqueza. Uma vida para lá do direito de propriedade, com o propósito de conseguir um comum uso das coisas, permanece uma questão por debater seriamente no interior do Direito, mas será neste relacionamento, dito pobreza e amor, que reside a nossa sustentabilidade presente e futura.
O inapropriável coloca-nos desafios enormes, e não é de todo difícil de perceber a ilegitimidade da invasão militar da Ucrânia. A condição da terra, como um bem que não pode ser de ninguém, torna ilegítima, criminosa qualquer hegemonia, nacionalismo, imperialismo, totalitarismo. A nossa terrestrialidade exige de nós não uma ética do domínio, mas da coabitação dialogante e cooperante – um caminho de despojamento, de descentralização de todo o tipo de “centrismo” (europeu, americano, russo, asiático…), e de total segurança, proteção e inclusão de todos.