O encontro por videoconferência que reuniu no dia 16 de Março o Papa Francisco e o Patriarca Cirilo, de Moscovo, líder da Igreja Ortodoxa Russa, foi um dos últimos episódios na tentativa de pôr um fim à absurda e trágica invasão russa da Ucrânia. No encontro, o Papa recusou os argumentos da “guerra justa” ou da “guerra santa” e defendeu que os líderes cristãos de ambos os lados devem estar centrados no apoio a quem sofre por causa da guerra. Na mesma altura, um texto promovido por vários teólogos ortodoxos era muito crítico em relação a Cirilo e a várias razões que alguns sectores ortodoxos tomam para defender a justeza desta guerra.
Mas a origem destas questões – o papel do Papa, a defesa do etno-cristianismo, a guerra justa – têm, no que à Rússia e à Ucrânia diz respeito, um milénio. Em 988, o príncipe Vladimir, fez-se baptizar como cristão, mergulhando no rio Dniepre, juntamente com o seu povo Rus’, de Kiyv/Kiev. Esse gesto marca o início do cristianismo ortodoxo naquela região. Nessa altura, Moscovo era uma pequena localidade sem importância. E o imperador da Bizâncio/Constantinopla cristã queria estabelecer relações de aliança com os Rus’ e o seu príncipe. Só quase três séculos depois, após a invasão mongol de 1240, os metropolitas de Kiyv se começaram a transferir para Moscovo e, já em meados do século XV, quiseram que a sua sede passasse a ser “a Terceira Roma”. O que esta história traduz, como explicava Silas de Oliveira num texto publicado também no 7Margens, é que o berço do cristianismo russo está na Ucrânia. Para muitos ortodoxos russos, perder os laços com Kyiv e a Ucrânia é, por isso, perder a ligação à sua origem, ao seu fundamento.
Mais tarde, já em 1596, no Sínodo de Brest-Litovsk, quando o cristianismo ocidental se fracturava entre a Reforma protestante e a Contra-Reforma católica, também o cristianismo russo-ucraniano ortodoxo conhecia as primeiras cisões, com a criação da Igreja Uniata da Ucrânia (hoje, Igreja Ucraniana Greco-Católica) – ou seja, mantinha o rito bizantino, o calendário juliano e o casamento do clero, mas reconhecia a autoridade do Papa. A solução teve um duplo efeito: o catolicismo reconhecia a possibilidade de inculturação e ritos próprios, mas abria mais uma fenda grave entre Roma e Moscovo – que persiste até hoje, apesar do clima mais apaziguado que se viveu nos últimos anos, sobretudo depois da morte do Papa João Paulo II.
Suspeitas mútuas e guerras de bens
As histórias do último século só agravaram tensões e divisões, como conta ainda Silas de Oliveira no texto referido: em 1941, muitos ucranianos (incluindo greco-católicos) receberam os nazis como libertadores, depois da grande fome de 1932-33 a que Estaline e o comunismo soviético sujeitaram a Ucrânia e que terá vitimado mais de três milhões de pessoas (havendo cálculos que apontam até 10 milhões de mortos). Os nazis mostraram imediatamente a sua face de terror, não se compadecendo com a boa recepção. Após o fim da guerra e como vingança pelo gesto inicial, Estaline deportou toda a hierarquia greco-católica e impôs a afiliação dos crentes ao Patriarcado de Moscovo. Só depois do fim da União Soviética, em 1991, os greco-católicos puderam recuperar a sua existência legal, mas o clima de desconfiança e suspeita mútua, bem como as querelas sobre a propriedade de igrejas, mosteiros e outros bens agravaram a situação.
O quadro actual inclui, assim, a Igreja Ortodoxa Ucraniana (dependente do Patriarcado de Moscovo, que reivindica mais de 30 milhões de fiéis, número considerado irrealista pelos greco-católicos), a Igreja Ucraniana Greco-Católica (que rondaria os 5,5 milhões de fiéis), e a Igreja Ortodoxa da Ucrânia, dirigida pelo metropolita Epifânio que, em 2019, foi reconhecida por um “thomos” do Patriarca Ecuménico Bartolomeu, de Constantinopla, como autónoma. A estas acrescente-se ainda a Igreja Católica Romana, de rito e disciplina eclesiástica latinos, e várias comunidades protestantes e evangélicas.
A presença de católicos latinos, protestantes e evangélicos, sobretudo depois de 1991, também tem contribuído para criar algumas tensões. Considerando a Rússia como seu território canónico, os ortodoxos olham para essa presença como uma forma de proselitismo. Essa percepção foi sentida sobretudo durante o pontificado de João Paulo II, polaco de nascimento, e cujos diplomatas foram criticados várias vezes pela falta de sensibilidade que teriam para as questões históricas na abordagem à Rússia. E se o Papa polaco visitou a Ucrânia independente em 2001, nem ele nem os seus sucessores conseguiram ser convidados para uma visita à Rússia, apesar de Francisco já se ter encontrado presencialmente com Cirilo em Fevereiro de 2016 (em Cuba) e de já se ter falado várias vezes, antes da guerra, num possível segundo encontro.
As linhas de separação continuam a ser políticas e religiosas: ortodoxos e pró-russos estão sobretudo a leste do rio Dniepre e na península da Crimeia, anexada pela Rússia à força em 2014; ortodoxos autocéfalos, greco-católicos e católicos estão essencialmente na parte ocidental da Ucrânia. Foram precisamente os argumentos e conflitos históricos que o Papa questionou no seu encontro virtual com Cirilo: “No passado, também se falava, nas nossas Igrejas, de guerra santa ou de guerra justa. Hoje não se pode falar assim. Desenvolveu-se a consciência cristã da importância da paz”. Referindo-se ao conceito de guerra justa, acrescentou: “As guerras são sempre injustas. Porque quem paga é o povo de Deus. (…) Os nossos corações não podem deixar de chorar perante as crianças, as mulheres mortas, todas as vítimas desta guerra. A guerra nunca é o caminho. O Espírito que nos une pede-nos como pastores que ajudemos os povos que sofrem com a guerra”.
Do lado do Patriarca Cirilo, a preocupação terá sido sobretudo com os aspectos humanitários da crise, sublinhando a importância das conversações de paz e afirmando que espera a rápida conquista de uma “paz justa”. No entanto, de acordo com uma informação do Patriarcado sobre o encontro, em nenhum momento o líder ortodoxo terá denunciado a agressão de Putin à Ucrânia. O Patriarca usou também argumentos semelhantes aos do presidente russo, responsabilizando os países da OTAN/NATO pela eclosão do conflito, em resposta a uma carta do secretário-geral do Conselho Mundial de Igrejas, o padre ortodoxo romeno Ioan Sauca. Na sua carta, Sauca pedia ao Patriarca de Moscovo que mediasse negociações para um cessar-fogo e denunciava o uso da força militar para resolver conflitos.
Reino de Deus não é nenhum império
Precisamente com a ideia de pôr em causa o etnofiletismo ortodoxo designado “Russkii mir” ou mundo russo (uma deriva étnica destas igrejas, que faz coincidir a nação com o território a evangelizar), mais de 500 teólogos, entre eles muitos ortodoxos, produziram e assinaram um documento divulgado pelo Public Orthodoxy.
“O apoio de muitos da hierarquia do Patriarcado de Moscovo à guerra do presidente Vladimir Putin contra a Ucrânia está enraizado numa forma de fundamentalismo religioso etnofilético ortodoxo [deriva étnica das igrejas ortodoxas], de caráter totalitário, chamado ‘Russkii mir’ ou mundo russo, um falso ensinamento que está a atrair muitos na Igreja Ortodoxa e foi também adotada pela extrema-direita e pelos fundamentalistas católicos e protestantes”, diz o documento publicado no Public Orthodoxy.
O texto critica de forma dura “a invasão russa da Ucrânia em 24 de fevereiro de 2022”, dizendo que ela é “uma ameaça histórica para um povo de tradição cristã ortodoxa”. E acrescenta: “Mais preocupante ainda para os crentes ortodoxos, a hierarquia sénior da Igreja Ortodoxa Russa recusou-se a reconhecer essa invasão, emitindo declarações vagas sobre a necessidade de paz à luz dos ‘eventos’ e ‘hostilidades’ na Ucrânia, enfatizando a natureza fraterna de os povos ucraniano e russo como parte da Santa Rus’, culpando o malvado ‘Ocidente’ pelas hostilidades.”
Na perspectiva teológica, os autores do documento recusam “qualquer ensinamento que pretenda substituir o Reino de Deus visto pelos profetas, proclamado e inaugurado por Cristo, ensinado pelos apóstolos, recebido como sabedoria pela Igreja, estabelecido como dogma pelos padres, e experimentado em cada Sagrada Liturgia, com um reino deste mundo, seja a Santa Rus’, a Sagrada Bizâncio, ou qualquer outro reino terrestre”.
O texto conclui ainda: “Rejeitamos a heresia do ‘mundo russo’ e as acções vergonhosas do governo da Rússia ao desencadear a guerra contra a Ucrânia que flui desse ensinamento vil e indefensável com a conivência da Igreja Ortodoxa Russa, como profundamente não-ortodoxa, não-cristã e contra a humanidade”.
Uma guerra, portanto, entre povos irmãos. Também na fé.
Texto: António Marujo, Jornalista do 7Margens; o autor escreve segundo a antiga ortografia