Da cimeira entre a União Europeia e os países de África, realizada em meados de fevereiro em Bruxelas, saíram algumas boas notícias, como o compromisso de investimento de 150 mil milhões de euros no continente africano no espaço de cinco anos. Ao mesmo tempo, não faltou quem notasse na capital belga (e da UE) a ausência de quatro nações africanas, no caso o Burkina Faso, o Mali, o Sudão e a Guiné-Conacri. Foram todas excluídas por causa dos recentes golpes, que trouxeram novas lideranças, ainda não reconhecidas nem pela União Africana, nem pelo grosso da comunidade internacional.
Ora, falar de golpes em África é quase referir uma das supostas fatalidades do continente desde que a descolonização começou na década de 1950. Durante algum tempo parecia, porém, que estes estavam a escassear, que o voto se impunha gradualmente como modo de alternância política, mas em 2021 houve registo de seis golpes, embora deles dois tenham falhado, o que significa que das sete tentativas de derrube violento de governos no mundo no ano passado só uma teve lugar fora de África, a ocorrida na Birmânia, quando os militares afastaram do poder a Nobel da Paz Aung San Suu Kyi e a sua Liga Nacional para a democracia.
O ano de 2022 também começou mal para a imagem de África em termos de estabilidade política, e até um país lusófono, a Guiné-Bissau, foi palco de uma tentativa de golpe, a 1 de fevereiro. Nem o presidente Umaro Embaló, nem o primeiro-ministro Nuno Nabiam foram feridos, mas seriam eles os alvos de uns golpistas com ligações a militares envolvidos no narcotráfico e que apostavam na destabilização do país, que tenta recuperar de um passado de instabilidade que prejudica o desenvolvimento. Convidado para a cimeira em Bruxelas, o presidente Embaló mostrou que não temia perder o controlo do país caso se ausentasse e no início de março recebeu em Bissau a visita do primeiro-ministro português, António Costa, que veio reafirmar o apoio à democracia guineense. No ano anterior, tinha sido a vez de o presidente português, Marcelo Rebelo de Sousa, visitar a antiga colónia, num sinal de reconhecimento à legitimidade das autoridades, apesar das eleições de 2019 terem sido contestadas pela oposição. Embaló, que ficou em segundo lugar na primeira volta das presidenciais, foi o vencedor na segunda volta e o seu rival, Domingos Simões Pereira, tentou impugnar os resultados.
A pequena Guiné-Bissau, povoada por mais de uma dezena de etnias e com populações cristãs, muçulmanas e animistas, é um exemplo do que se passa em muitos outros países do continente: foi governada décadas por um partido único, o PAIGC, cuja legitimidade baseava-se na luta pela independência mas que enfrentou golpes também no tempo de monopólio do poder, depois nos anos 1990 veio a democratização, com a chegada do voto a não impedir também sucessivos golpes, muitas vezes com a questão étnica nos bastidores, mesmo que a realidade fosse um enfrentamento entre personalidades.
Hoje o sistema de partido único desapareceu em África ou quando existe é disfarçado pela presença de partidos oposicionistas sem capacidade de conquistar o poder. Com a ideia de um homem um voto a generalizar-se,
houve de facto evolução para a democracia em vários países, desde a imensa Nigéria ao pequeno Cabo Verde. E um dos sucessos da África do Sul pós-Apartheid é ter substituído o regime supremacista branco por uma vigorosa democracia desde 1994, e mesmo a força enorme do ANC, o partido que era o de Nelson Mandela, tem vindo a reduzir-se, com novos partidos a tornarem o sistema muito mais competitivo.
O magnata sudanês Mo Ibrahim criou um prémio de boa governação para distinguir os líderes africanos que resistem à tentação de eternizar-se no cargo, seguindo o bom exemplo de Mandela que só cumpriu um mandato. Entre os ganhadores desse prémio estão Pedro Pires, que foi primeiro-ministro e presidente de Cabo Verde, e Joaquim Chissano, antigo presidente de Moçambique. Mas houve anos em que o prémio não foi atribuído por falta de políticos com um currículo democrático impecável.
Este ano eram várias as eleições previstas em África, e até dezembro vão realizar-se ainda uma dezena delas, em países como o Quénia ou Angola. No caso angolano, o voto para o parlamento de Luanda é também o voto para o presidente, pois tal como na África do Sul o líder do partido com mais deputados assume a chefia do Estado. E o MPLA, partido que governa desde a independência em 1975, volta a apresentar João Lourenço, que procura a reeleição, depois de ter sucedido a José Eduardo dos Santos, que foi presidente entre 1979 e 2017. Adalberto da Costa Júnior, da UNITA, é o grande adversário de Lourenço por representar o partido que fez frente de armas na mão ao MPLA até à morte de Jonas Savimbi em 2002, mas também por estar a recolher o apoio de outras forças cansadas do domínio do MPLA e interessadas em construir uma alternativa. Em 2017, o MPLA obteve 61 por cento dos votos e 150 deputados, enquanto a UNITA, com 27 por cento, elegeu 51. O terceiro partido mais votado foi o CASA-CE, que com nove por cento conseguiu 16 assentos no parlamento de Luanda.
A normalidade de eleições como as angolanas, validadas por observadores estrangeiros, é importante para que não se agarre a África a ideia de que a ida às urnas não é uma verdadeira competição política, mesmo que a África Austral tenha sido poupada nos últimos anos a golpes militares, que têm sido mais comuns na África Ocidental e no Sahel, onde armas destinadas a combater os jihadistas acabam por ser usadas em lutas de poder. Carlos Lopes, académico guineense que foi um alto-quadro da ONU, aponta o dedo a interesses externos como facilitando as tentações golpistas, mas considera que há causas mais estruturais também envolvidas. “Em termos estruturais, acho que há uma desintegração do tecido económico de certas regiões de África, nomeadamente do Sahel, de uma série de países que têm populações pastoralistas. O pastoralismo tem grandes dificuldades em integrar-se nos novos quadros da globalização e leva, assim, a que essas pessoas – que dependiam antes de um modo de vida que já não pode ser continuado – estejam muito tentadas ou para a emigração ou para outros tipos de atividades, muitas delas ilícitas. Desde o contrabando, tráfico de pessoas, de droga, até às influências do terrorismo. E, infelizmente, tudo isto também é resultado das mudanças climáticas, dessa mudança de vida por causa do stress do meio ambiental”, afirmou o agora professor na África do Sul à rádio alemã DW.
E o sociólogo guineense vai mesmo ao ponto de falar de retrocesso democrático no continente: “Não tenho a mínima dúvida de que há um retrocesso. Aliás, inclusive nos indicadores de governação. O Índice Mo Ibrahim, que faz a computação de 30 categorias de governação, tinha estado a registar progressos durante quase uma década e meia e, nos últimos três anos tem vindo a registar baixas de qualidade de governação até em países que estavam extremamente estáveis do ponto de vista socioeconómico ou dos direitos políticos e sociais”.
Já numa entrevista em 2019 ao DN, Carlos Lopes emitia dúvidas sobre o funcionamento da democracia em África, sobretudo quando se copiava pura e simplesmente modelos europeus: “Será que nós devemos democratizar a África ou africanizar a democracia? Africanizar a democracia é adaptá-la à realidade local que deve ter determinadas características que permitam uma governação compatível com as necessidades do momento. É preciso incluir, por exemplo, tradições locais de governação. E consenso, muito consenso. Porque o problema principal da África é o síndrome do vencedor que apanha tudo. E para nós podermos respeitar a diversidade, que é fundamental em África por causa da diversidade étnica, por causa das características que têm que ver com a própria chegada tardia à época da modernidade, nós precisamos necessariamente de construção de consensos, construção daquilo que chamaríamos nação, para que as identidades sejam muito mais nacionais e menos étnicas. E para isso não podemos ter um processo democrático onde há mesmo um voto que pode ser capturado pela identidade étnica. Tem de ser mais sofisticado”.
Atenção, portanto, aos meses que se seguem, não só para se perceber se a maré de golpes terminou, como para ver que qualidade de governação sai das múltiplas eleições no continente.
Texto: Leonídio Paulo Ferreira, jornalista do DN