Quando se pensa num concurso de beleza espera-se o envolvimento de empresas de produtos de beleza e designers de beleza de topo. Mas, na República Centro-Africana, o concurso de beleza ‘Miss África Central 2018’ teve o governo russo como um dos patrocinadores. Diz-se que o projeto de beleza da Rússia para a África transporta uma mensagem do Kremlin que começa a exercer o seu poder suave sobre a antiga colónia francesa. Vladmir Putin não quer perder a “nova luta por África”.
Os Estados africanos hesitam chamar o Kremlin?
A votação das Nações Unidas de 2 de março de 2022 viu 17 países africanos votarem contra ou absterem-se de condenar as ações da Rússia na Ucrânia. O Quénia é um dos países africanos que se absteve de uma votação sobre a possibilidade de discutir a conduta da Rússia no Conselho de Segurança das Nações Unidas. No entanto, o embaixador do Quénia no Conselho de Segurança das Nações Unidas, Martin Kimani, afirmou estar alarmado com o recente anúncio da Rússia. “O Quénia está seriamente preocupado com o anúncio feito pela Federação Russa de reconhecer as regiões de Donetsk e Luhansk da Ucrânia como Estados independentes. Na nossa opinião, esta ação e anúncio violam a integridade territorial da Ucrânia”, referiu o embaixador Kimani, citado pelos meios de comunicação social.
Martin Kimani, representante permanente do Quénia junto da Organização das Nações Unidas (ONU), disse ainda ao conselho de segurança desta organização intergovernamental que a integridade territorial da Ucrânia tinha sido violada e que o movimento da Rússia poderia facilmente ser imitado por outra potência ambiciosa. As suas declarações foram vistas como uma mudança da posição da abstenção do Quénia durante a votação. Será que tal mostra a incapacidade do Quénia de tomar a sua posição e de se manter firme no assunto?
Também em abril de 2022, a África do Sul estava entre os países que se abstiveram para votar a resolução da Assembleia Geral da ONU para suspender a Rússia do Conselho de Direitos Humanos da ONU. A maioria dos abstencionistas incluía países do Médio Oriente, bem como o Egito. A votação teve lugar no aniversário do genocídio de 1994 no Ruanda, e o embaixador ucraniano na ONU, Sergiy Kyslytsya, traçou paralelos com esta página negra na história recente. “O genocídio no Ruanda deveu-se, em grande parte, à indiferença da comunidade mundial, quando a ONU não respondeu aos avisos no Conselho de Segurança da ONU e na Assembleia Geral, um ano antes da tragédia que comemoramos exatamente neste dia”, disse Kyslytsya.
As guerras em África têm sido o ponto de partida para as notícias e discussões internacionais na ONU há muito tempo. As histórias de guerra do Norte do Uganda, do Sudão do Sul e da República Centro-Africana são coisas que conhecemos muito bem. A influência das potências ocidentais nos assuntos políticos dos chamados países destroçados pela guerra tem estado na mira da política externa e das alianças e do apoio militar.
Os relatos dos meios de comunicação social têm demonstrado uma condenação generalizada dos ataques contra civis ucranianos de países como o Gana, a Nigéria e o Quénia. Por outro lado, demonstram que tem havido uma resposta muito mais silenciada de algumas nações africanas importantes. Remi Adekoya, professor associado da Universidade de Iorque (Inglaterra), disse à CNN que os países do continente se encontram numa posição delicada e não vão querer ser arrastados para batalhas por procuração. “Há uma forte vertente de pensamento na diplomacia africana que diz que os Estados africanos devem manter o princípio da não interferência e, por isso, não devem ser apanhados em guerras por procuração entre o Oriente e o Ocidente. Como alguns Estados foram apanhados em guerras por procuração durante a Guerra Fria, por exemplo”, acrescentou.
Forças de paz ucranianas no Congo voltam para casa
Os meios de comunicação indicam que a Ucrânia retirou as forças de paz da Missão de Estabilização da Organização das Nações Unidas (ONU) na República Democrática do Congo (MONUSCO) para defender a sua pátria. O movimento simboliza preocupações mais amplas de que a Europa possa retirar-se de África, uma vez que enfrenta uma ameaça crescente por parte da Rússia. Muitos países ocidentais dirigiram-se corajosamente ao Kremlin, impuseram sanções económicas e prestaram apoio aos refugiados ucranianos. A resposta de África à guerra foi descrita como cuidadosa.
Como é que a Rússia encontra o seu lugar em África no meio do domínio ocidental e chinês?
O Ocidente e a China ainda dominam a maior parte da política externa dos Estados africanos e reações a grandes eventos internacionais como a guerra na Ucrânia. Os Estados africanos podem continuar alinhados com as relações diplomáticas, políticas e económicas chinesas devido aos investimentos e dívidas existentes no estrangeiro bombeados para os Estados africanos. Estes laços e obrigações de dívida existentes poderiam moldar as reações estatais africanas à ação da Rússia na Ucrânia.
Historicamente, os europeus, os franceses e os britânicos colocaram principalmente uma posição forte em África devido aos laços coloniais que continuaram, mesmo após a independência. Hoje, a China poderia ser descrita como tendo carimbado uma presença económica e política em África. A imponente sede da União Africana (UA) em Adis Abeba, na Etiópia, tem a impressão da influência política e externa chinesa. O edifício tem 99,9 metros de altura e é o segundo edifício mais alto da capital etíope. O seu custo foi de 200 milhões de dólares, financiados pelo governo chinês. A instituição impõe um modelo chinês imponente. Mas será que a China está à espreita no edifício e a ouvir conversas africanas? Afinal, conhecem os cantos e recantos do quartel-general da UA. Uma reportagem da Reuters fala de dúvidas sobre o papel de Pequim na UA que se espalharam em 2018, quando o jornal francês Le Monde noticiou que funcionários da UA tinham descoberto que os servidores do novo centro de conferências enviavam cópias do seu conteúdo para Xangai todas as noites e que o próprio edifício tinha sido moldado com aparelhos de escuta. Tanto a UA como o governo chinês negaram veementemente o relatório na altura, mas um antigo funcionário da UA disse à Reuters que o artigo no Le Monde era exato e tinha colocado funcionários no local em alerta máximo. A Rússia não tem sido vista publicamente como um aliado próximo dos países africanos na história recente. Em vez disso, a China tem estado no centro das atenções, destronando a influência americana e europeia nos laços políticos e económicos e culturais.
A primeira Cimeira Rússia-África de 2019
Em 2019, a Cimeira Rússia-África realizou-se em Sochi, na Rússia. Esta foi a primeira vez na história da Rússia moderna que o Estado assumiu um papel geopolítico ativo na promoção direta dos laços diplomáticos, políticos e económicos com os Estados africanos. A declaração da primeira Cimeira de África da Rússia tinha delineado várias áreas de política externa e colaboração entre os Estados africanos e os chefes de Estado e de governos da Federação Russa. No topo da agenda desta cimeira estiveram os domínios da cooperação económica, da segurança, da ciência e da tecnologia, da cultura e da ajuda humanitária.
Rússia em África
Numa tentativa de diluir a influência dos Estados Unidos da América, o Kremlin introduziu representantes oficiais seus em instituições estatais em África. O Instituto Tony Blair para a Mudança Global, num relatório detalhado, narrava a atual e histórica estratégia diplomática do Kremlin para África, que remonta ao período da luta pela independência das potências coloniais ocidentais. Durante grande parte da Guerra Fria, e como parte do seu confronto ideológico com o Ocidente, a União Soviética forjou relações estreitas com muitas nações africanas através do seu apoio aos movimentos de libertação nacional no continente.
Ajuda militar
Na assistência militar, os soviéticos também desempenharam um papel em três grandes guerras, nomeadamente em Angola (1975-1992), Moçambique (1977-1992) e no conflito de Ogaden, entre a Etiópia e a Somália (1977-1978). A Cimeira Rússia-África 2019 avançou ainda mais laços militares, uma vez que a Rússia é o atual principal fornecedor de armas de África, com pelo menos 15 países a receberem mais de um terço de todas as armas do Kremlin.
O Kremlin assinou acordos com mais de 30 países africanos para o fornecimento de equipamento militar, incluindo através de 50 contratos, acordos e memorandos de entendimento (MOUs) que abrangem setores económicos, militares, ambientais e nucleares. Estima-se que estas transações valorizem 12,2 mil milhões de dólares.
O país mais populoso de África, a Nigéria, tem laços militares com a Rússia. A ameaça do Boko Haram e de outros extremistas violentos causou estragos em toda a África Oriental, Ocidental e Central. O presidente da Nigéria, Muhammadu Buhari, encontrou-se com Putin na Cimeira Rússia-África 2019. Mais tarde, em agosto de 2021, a Nigéria e a Rússia assinaram um acordo, ao abrigo do qual a Rússia forneceria equipamento à Nigéria e treinaria os militares do país. O grupo de especialistas do Instituto de Estudos de Segurança diz que a influência de segurança da Rússia inclui grandes representações em corpos de manutenção da paz e fornecimento de armas e treino ao continente.
Incutir ideologias através da educação e do ‘soft power’
Para construir a sua imagem no continente africano, a Rússia investiu em programas culturais e educativos em larga escala em toda a África. Sabe-se que cerca de 250.000 africanos estudaram na União Soviética antes de 1991. Dos que estudaram lá, surgiram proeminentes líderes africanos, incluindo os presidentes sul-africanos pós-apartheid, como Thabo Mbeki e Jacob Zuma. Dizem que realizaram treino militar na União Soviética. Youssouf Saleh Abbas, do Chade, e Michel Djotodia, da República Centro-Africana, estão entre outros políticos que estudaram na Universidade de Amizade dos Povos Patrice Lumumba, em Moscovo. Com o tempo, Moscovo tornou-se um aliado de nações africanas. Moçambique, por exemplo, revelou bandeiras com Kalashnikovs no seu pós-independência, com a constituição do país a afirmar na altura que a arma russa representava uma “resistência ao colonialismo e à estratégia nacional”.
Texto: Frenny Jowi, jornalista e consultora de media