Quando Thomas Sankara, que chegou a ser apelidado de “o Che Guevara africano”, por analogia com o célebre líder revolucionário argentino-cubano, tomou o poder em 1983 no Alto Volta, as suas ambições de refundar a antiga colónia francesa eram tantas que decidiu passados alguns meses rebatizar o país de Burkina Faso. Assim, em vez de uma referência ao grande rio que vai desaguar no Golfo da Guiné, o país passou a ser a “pátria dos homens incorruptíveis ou íntegros”, junção das palavras burkina, homem integro na língua moré, e faso, que no idioma dioula significa “casa dos antepassados ou pátria ou país”. Pensava o político marxista e panafricanista ter acabado a era de golpes na antiga colónia francesa, país encravado e portanto mais pobre do que os outros da África Ocidental com acesso ao mar. Sankara, porém, enganou-se e foi ele próprio, o idealista, vítima de um golpe de Estado. E o homem que o derrubou e mandou matar, Blaise Compaoré, acabou por ser um presidente de longo prazo, quase três décadas, até ser também derrubado em 2014, exilando-se
sob proteção francesa.
Assolado pela pobreza, dividido entre dezenas de etnias e pelo menos três religiões (islão maioritário, cristianismo e animismo) e incapaz de explorar com sucesso riquezas minerais como o ouro, o Burkina Faso tornou-se um dos países do grupo dos dez últimos do Índice de Desenvolvimento Humano das Nações Unidas. Mas tudo se agravou com a chegada em força do extremismo islâmico a partir de 2016, ano do ataque a um hotel de luxo em Uagadugu que matou 28 pessoas, incluindo estrangeiros, seis dos quais canadianos. Atribuído o ataque a uma célula saheliana da Al-Qaeda, depressa esta se viu em competição com outra facção jihadista, fiel ao chamado Estado Islâmico, ou ISIS ou Daesh, que chegou a controlar vastas áreas da Síria e do Iraque. Já a Al-Qaeda deve a sua fama ao saudita Ossama bin Laden e aos atentados contra Nova Iorque a 11 de setembro de 2001.
Sempre jogando com rivalidades locais e aproveitando a fraqueza do Estado, os grupos jihadistas praticamente assumiram o controlo de metade do Burkina Faso, com milhares de mortos e dois milhões de deslocados numa população que não chega a 20 milhões. Ora, foi a incapacidade do poder político que serviu de justificação em janeiro para o golpe militar que derrubou o presidente Roch Kaboré. Na época, o tenente-coronel Paul-Henri Sandaogo Damiba criara uma junta militar para consolidar o Estado e relançar o combate aos jihadistas, assumindo sob pressão da comunidade internacional o compromisso de em 2024 organizar eleições gerais para o regresso da democracia.
Recentemente, a 29 de setembro, novo golpe militar no Burkina Faso, também com o argumento principal de que a anterior junta militar estava a falhar na luta contra os extremistas islâmicos. Desta vez o rosto dos golpistas é o capitão Ibrahim Traoré, à frente do Movimento Patriótico para a Salvação e a Restauração, com a diferença de patentes de um golpista para o outro a poder indiciar uma geração mais nova de militares a querer ganhar influência num país em caos.
Um dos dados significativos deste segundo golpe de 2022 no Burkina Faso foi o ataque por populares à embaixada francesa e a outros interesses franceses no país, ao ponto de Paris ter pedido aos seus cidadãos (cerca de seis mil vivem no país) para não saírem de casa até tudo acalmar nas ruas de Ouagadougou. Foram vistas bandeiras russas entre os manifestantes, o que gera suspeita de algum envolvimento do Kremlin nesta última mudança de liderança, tanto mais que no combate ao terrorismo islâmico a Rússia tem conquistado fama de maior eficácia do que o Ocidente. E Traoré falou de novos parceiros na luta aos jihadistas, sem acrescentar mais.
Soube-se em meados de outubro que Traoré, entretanto presidente interino, já concordou com 2024 como a data para o regresso da democracia, comprometendo-se a não ser candidato nas futuras eleições. Esta posição resultará provavelmente das pressões várias: o secretário-geral das Nações Unidas, o português António Guterres, tinha já condenado “veementemente qualquer tentativa de tomada do poder pela força das armas” pedindo “a todos os atores que se abstenham de toda a violência e procurem o diálogo”. O antigo primeiro-ministro português, conhecedor das fragilidades do Burkina Faso, disse ainda que o país “precisa de paz, estabilidade e unidade para combater grupos terroristas e redes criminosas que operam em certas partes do seu território”.
O golpe, cujo balanço provisório aponta para 11 mortos e 28 feridos e ainda 50 desaparecidos, foi igualmente condenado pela comunidade dos países da África Ocidental, a CEDEAO, organização de momento liderada pelo presidente da Guiné-Bissau, Umaro Sissoco Embalo, que classificou “inoportuno” o acontecimento, dado os progressos que estariam a acontecer no Burkina Faso.
Texto: Leonídio Paulo Ferreira, jornalista do DN