1. A experiência – Quando tomou posse pela primeira vez como presidente, a 1 de janeiro de 2003, Lula tinha 57 anos e já um vasto currículo de político, tendo começado como sindicalista ainda no tempo da ditadura que durou até 1985. Mas se o antigo metalúrgico foi bem-sucedido em criar o Partido dos Trabalhadores e transformá-lo numa força incontornável do sistema brasileiro, em termos de candidatura pessoal acumulava então derrotas: perdera as presidenciais para Fernando Collor de Melo (que acabou por ser destituído) e depois, por duas vezes, fora derrotado por Fernando Henrique Cardoso. A compensação pela insistência chegou finalmente em 2002, com uma vitória fácil na segunda volta sobre José Serra, candidato do PSDB, o partido do presidente cessante. Em 2006, nova vitória presidencial sobre um candidato do PSDB, Geraldo Alckmin, que agora, curiosamente, foi eleito seu vice-presidente, neste regresso em 2022. Será pois um Lula de 77 anos que tomará posse a 1 de janeiro do próximo ano, um presidente superexperiente, com muitos sucessos acumulados, mas também manchado por suspeitas de corrupção que já o levaram à prisão (foi ilibado) e o impediram mesmo em 2018 de tentar a recandidatura presidencial, depois de ter visto a sua delfim Dilma Rousseff vencer duas eleições mas ser destituída a meio do segundo mandato.
2. O adversário – José Serra, um economista que tinha sido ministro durante a presidência de Fernando Henrique Cardoso, foi o candidato derrotado por Lula em 2002. De perfil moderado, Serra chegaria anos mais tarde até a ser ministro dos Negócios Estrangeiros de Michel Temer (presidente interino depois da destituição de Dilma Rousseff), mas o seu perfil de mero continuador do trabalho de Fernando Henrique Cardoso não convenceu o eleitorado e na segunda volta foi esmagado por Lula, obtendo 39 por cento dos votos contra 61 por cento para o rival. Agora, em 2022, o adversário de Lula foi o presidente Jair Bolsonaro, eleito em 2018 como uma espécie de líder da frente anti-Lula, captando o apoio dos brasileiros cansados do Partido dos Trabalhadores e dos múltiplos casos de corrupção num partido que tinha nascido para ser diferente. Antigo capitão do exército, Bolsonaro derrotou há quatro anos Fernando Hadad, o substituto de um Lula impedido de ser candidato, mas em 2022 foi incapaz de resistir ao regresso do metalúrgico, apesar de ter obrigado este a uma segunda volta e ter obtido 49 por cento dos votos. A curta margem da vitória de Lula é reveladora da divisão no Brasil entre a população, pois as elites estiveram muito com o antigo presidente sindicalista, basta pensar que recebeu o apoio de Fernando Henrique Cardoso, de José Serra (mas só na segunda volta) e até teve como parceiro de candidatura Geraldo Alckmin, outro ex-adversário. Durante a campanha deste ano, a agressividade entre rivais nos debates e comícios foi muito mais agreste do que há 20 anos.
3. O antecessor – Uma grande diferença entre a tomada de posse de Lula em 2003 e agora a que está prestes a acontecer é que uma foi feita através da passagem de testemunho de Fernando Henrique Cardoso, no final dos seus dois mandatos, enquanto a futura obriga a uma transferência de poder do derrotado Jair Bolsonaro. Tudo distingue o antigo capitão do sociólogo, a começar pelo estilo verbal, num agressivo, no outro sóbrio. Mas o mais importante para Lula, no seu novo desafio presidencial, é que vai receber de Bolsonaro um Brasil em pior situação do que aquele que herdou há duas décadas de Fernando Henrique Cardoso. Este último tinha feito um excelente trabalho de credibilização externa do Brasil e controlado a inflação, uma tragédia para as classes trabalhadoras do país. É também evidente que Bolsonaro não digeriu bem a derrota, ao ponto de não parabenizar Lula pela eleição, enquanto Fernando Henrique Cardoso saiu bem da presidência, assumindo uma espécie de papel senatorial que dura até hoje. E não esquecer que Bolsonaro pode mesmo voltar a ser candidato em 2026, o que significa que não deixará de fazer oposição ao seu sucessor nestes quatro anos.
4. O Congresso – O parlamento brasileiro, mais conhecido por Congresso, tem duas câmaras, a dos deputados e o senado. O sistema partidário é instável, com partidos que mudam de nome e até de ideologia e se associam ao governo com base em promessas de cargos. Também existem bancadas informais, baseadas em interesses que vão além da mera lógica partidária, como a bancada evangélica ou a bancada agroindustrial. Ser presidente assim, e no Brasil o presidente tem funções executivas pois nem sequer há primeiro-ministro, significa estar sempre a negociar. E um dos primeiros escândalos da presidência Lula na década inicial do século XXI foi o mensalão, pagamento a deputados para apoiar as medidas do governo. Só para se ter uma ideia, e falando exclusivamente da Câmara dos Deputados, em 2002 foram eleitos representantes de 19 partidos e o Partido dos Trabalhadores, de Lula, mesmo sendo o mais forte, só tinha 91 dos 513 assentos. Agora, Lula vai governar ainda com mais necessidade de entendimentos com vários partidos, pois o Partido dos Trabalhadores, integrado na coligação Federação Brasil da Esperança só conseguiu 81 dos 513 deputados e estão representados 20 partidos. O maior grupo parlamentar é do Partido Liberal, de direita, com 99 assentos, ou cadeiras como preferem dizer os cientistas políticos e jornalistas brasileiros. As primeiras indicações sobre o futuro governo passam por uma base de apoio parlamentar que juntará nove partidos que apoiaram a eleição de Lula e outros três que entretanto estão dispostos a cooperar. Até se sublinha que haverá bolsonaristas moderados nessa vastíssima coligação pós-eleitoral.
5. A economia – O mundo em 2003 estava a beneficiar fortemente da globalização e para um Brasil grande exportador agropecuário e de petróleo o cenário não podia ser melhor. Aliás, a boa situação económica permitiu o chamado milagre de Lula, criando riqueza e sendo capaz de redistribuir parte desta aos milhões de brasileiros pobres, com 2010, ano da despedida, a registar um crescimento de 7,5 por cento da economia do gigante lusófono. Mas olhando para o então primeiro ano de Lula como presidente, o PIB mundial cresceu 3,6 por cento, o que contrasta fortemente com as previsões globais e 1,3 por cento em 2023. Um sucesso brasileiro nesta matéria exigirá maior diversificação das exportações (é verdade que além de soja e carnes várias também já vende aviões, mas é insuficiente ainda) e também uma recuperação em paralelo de economias como a chinesa, grande parceiro comercial do país de Lula, importador de matérias-primas
e produtos alimentares.
6. As potências – A vitória à quarta tentativa de Lula em 2002 foi uma notícia à escala planetária, dado o perfil esquerdista do novo presidente brasileiro. Uns aplaudiram, entusiasmados com a vitória de um revolucionário, outros no estrangeiro assustaram-se, e pela mesma razão, o receio de uma revolução no Brasil a partir de cima, como tinha acontecido na Venezuela depois da eleição de Hugo Chávez e com efeitos prejudiciais na economia. Mas Lula surpreendeu com a sua moderação, praticando generosas políticas sociais sem pôr em causa o sistema capitalista em vigor no Brasil. Foi, por isso, acarinhado até pelos presidentes dos Estados Unidos da América (EUA) com quem teve de lidar durante os seus oito anos no poder: primeiro George W. Bush e depois Barack Obama. Ficou famosa a boa relação entre Lula e Obama, mas provavelmente até era melhor o entendimento com Bush, a quem foi oferecido um churrasco numa visita a Brasília. Ao mesmo tempo, em termos de diplomacia, o presidente brasileiro era capaz de se entender às mil maravilhas com os líderes russo, chinês e indiano, seus parceiros no BRIC, organização informal de potências emergentes. Vladimir Putin era já presidente da Rússia quando Lula tomou posse em 2003. Agora a situação internacional é muito mais complicada do que há duas décadas, e sobretudo a invasão russa da Ucrânia trouxe um novo antagonismo entre o Ocidente e Moscovo que obriga a escolher lados. Na última votação na Assembleia Geral das Nações Unidas sobre a ação russa na Ucrânia, o Brasil votou pela condenação de Moscovo, ao contrário dos outros parceiros da Rússia nos agora BRIC (passou a incluir a África do Sul), que se abstiveram. Também a posição da China na ordem internacional é bem diferente da de 2003, pois agora Pequim é claramente a segunda potência económica mundial e também o segundo país que mais investe em defesa, depois dos EUA. Para se perceber melhor como, neste espaço de tempo que vai da primeira posse de Lula até à prevista terceira, a China ascendeu, basta notar que em 2002 o seu PIB era três vezes superior ao do Brasil (para uma população sete vezes superior) e agora é nove vezes superior, o que significa que se tornou muito mais rica como nação e até ultrapassou o país lusófono em rendimento médio por habitante. Nos próximos tempos, Lula vai ter de mostrar se consegue manter a fórmula pessoal, e tradicionalmente brasileira, de se dar bem com todos.
Texto: Leonídio Paulo Ferreira, jornalista do DN