O combate ao tráfico humano é uma prioridade para Portugal, que se assume como um dos países na vanguarda relativamente a esta realidade. Entre 2007 e 2022, foram implementados quatro planos nacionais de prevenção e combate ao tráfico de pessoas, sempre orientados numa perspetiva de estreita colaboração entre as diversas entidades públicas e organizações da sociedade civil.
No que se refere ao contexto de Portugal em relação a este crime, importa referir que, durante o ano
de 2021, o Observatório para o Tráfico de Seres Humanos (OTSH) recebeu 318 sinalizações, representando um acréscimo de 38,9 por cento face a 2020 (mais 89 registos). Como tem sido habitual, e analisando apenas os registos válidos – confirmado, pendente/em investigação e sinalizado por ONG/outra entidade – a maioria das sinalizações reportam-se a (presumíveis) situações em Portugal.
Foram sinalizados 24 menores e 172 adultos, destacando-se, em termos de representatividade geográfica de sinalizações, a NUT II Alentejo (63 por cento do total). No que diz respeito a estatísticas da justiça, e ainda segundo informação do OTSH, é de referir um aumento no número de crimes de tráfico humano registados pelas autoridades policiais: 41 em 2020 e 80 em 2021.
O tráfico de pessoas é um crime contra a liberdade pessoal e constitui uma das formas mais graves de violação dos direitos humanos. As estimativas apontam para milhões de vítimas e sabe-se que as mulheres e crianças apresentam maior vulnerabilidade. Combater o tráfico requer uma compreensão abrangente deste fenómeno complexo. Após uma pandemia e com uma crise humanitária resultante da invasão da Ucrânia por parte da Rússia, a Europa vê-se a braços com um flagelo que tende a aumentar, por via do fluxo migratório aproveitado pelas redes de tráfico.
As prioridades da nova estratégia da UE para o ‘Combate ao Tráfico de Seres Humanos – 2021-2025’ assentam na necessidade de apoiar as vítimas, tendo um enfoque nas mulheres e crianças. O tipo de exploração, idade, nacionalidade e sexo são, entre outros, fatores que apelam para a necessidade de adotar abordagens cada vez mais ajustadas aos perfis de cada vítima, destacando-se como indispensável uma abordagem sensível ao género e à intervenção junto de vítimas menores.
Um dos aspetos mais perturbadores desta realidade é o facto das estatísticas mais recentes a nível europeu revelarem que as crianças constituem cerca de um quarto (22 por cento) de todas as vítimas registadas pelos 27 Estados-Membros. São necessários esforços para a deteção, identificação, proteção e assistência aos mais novos.
A estratégia visa melhorar a identificação precoce das vítimas, assegurar-lhes uma maior assistência e proteção, para além de reforçar os programas de empoderamento das vítimas e facilitar a sua reintegração. Neste campo, a intervenção da sociedade civil assume-se como crucial na alteração do paradigma ao nível da sinalização das vítimas, apelando a uma maior e melhor articulação entre os órgãos de polícia criminal e as ONG, como é o exemplo de Portugal com a existência das equipas multidisciplinares especializadas de combate ao tráfico humano, geridas pela Associação para o Planeamento da Família (APF), que atuam em estreita parceria com os órgãos de polícia criminal.
A questão do desmantelamento do modelo de atuação dos traficantes, digital ou não, assume-se como outra área prioritária apelando-se a um diálogo constante com as empresas no domínio das tecnologias de informação e comunicação, no sentido de reduzir a utilização das plataformas para o recrutamento e exploração das vítimas.
A vertente laboral emerge igualmente como estruturante, com um apelo a uma maior robustez ao nível das inspeções laborais e no desenvolvimento de iniciativas público-privadas em atividades de alto risco, promovendo uma efetiva ação no processo das denominadas cadeias de produção.
Uma das áreas sistematicamente objeto de vulnerabilidades ao longo dos anos na UE, tem sido a das respostas dos operadores judiciais. Com efeito, os números de condenações permanecem relativamente baixos perante a magnitude das situações com que nos vamos deparando ao longo dos anos. Tal apela a uma aposta cada vez mais robusta na respetiva formação e especialização nas áreas das magistraturas e o reforço dos meios técnicos de investigação.
Sendo o tráfico humano um crime complexo, exige-se um olhar conhecedor, qualificado e especializado sobre o mesmo, bem como uma prática de investigação coadjuvada por ‘ferramentas’ adequadas que respondam a essa complexidade. É imperiosa uma abordagem mais incisiva nas ligações do tráfico humano com as novas tecnologias e as novas formas de recrutamento de vítimas. Contudo, qualquer abordagem nesta área deve ter sempre como princípio basilar e central o interesse das vítimas e as suas necessidades.
Texto: Manuel Albano, Relator Nacional para o Tráfico de Seres Humanos