Sempre admirei pessoas com fortes convicções, que se constroem e vivem a partir delas. Os sujeitos nascem de centros de gravidade, na fidelidade a um acontecimento, a algo de extremamente novo e marcante, que se absolutiza e se torna razão de vida (Alain Badiou).
Pessoas que insistem sobre doutrinas, regras, princípios, condutas morais tendem a não ser muito populares, como também o não são, com frequência, os críticos de determinado estado-de-coisas. As multidões parecem preferir os “mornos”, os que estão “ali pelo meio”, procurando consensos e agradar a uns e a outros. Ratzinger não terá sido muito popular. E foi sabendo disso, também pelo seu estilo e forma de estar, sobretudo em público.
Recordo, no início dos anos 80, as reprimendas a vários teólogos que não só ousavam questionar a forma de ser da Igreja de Roma, como pensar o Evangelho, algumas das suas doutrinas, em contexto mais socioeconómico, político, cultural. Na altura, era também eu estudante, e talvez por razões de geografia ou de gosto pessoal dos professores, Ratzinger (o seu pensamento), não era uma figura de quem se falasse muito nas salas de aula. Kasper, Rahner, entre os alemães e alguns pensadores da américa latina, entre eles, Gutierrez, Sobrino, Segundo, Boff, eram alguns de quem se falava e certamente alguns dos meus preferidos, à luz do messinanismo de Isaías 61, e os que naquela altura conseguiam retirar a Igreja da secretaria do Vaticano, abstrata, elevada acima da história humana, dos seus problemas, para a entrelaçarem com o húmus de comunidades-de-base, que se viam a braços com sérias problemáticas sociais, da pobreza ao direito à terra.
Ratzinger terá sido um jovem teólogo de serviço, durante o período do Concílio Vaticano Segundo, com ideias porventura progressistas para o tempo. O período em que foi posteriormente Prefeito do Dicastério para a Doutrina da Fé, ter-lhe-ão neutralizado alguma rebeldia, se é que esta alguma vez existiu na sua vida. Mesmo na vanguarda, Ratzinger revelou-se sempre defensor de uma determinada forma de ser Igreja, porventura conservadora, prudente, de pequenos passos, depositária de uma verdade intemporal. Se o segundo milénio da Igreja Católica foi um “milénio de poder”, Razinger fez parte dele. E o seu percurso não poderia ter acabado sem que tivesse chegado a Papa. A corrida a postos e posições não é estrangeira ou desconhecida entre a hierarquia da Igreja, mas sua prática. Ratzinger tinha de forçosamente chegar a Papa. O seu percurso assim o exigia.
Foi curto o seu pontificado. Confrontadas com questões de opulência e de pouca moralidade entre a cúria romana, a saúde e as forças de Bento XVI não resistiram. E no ato da sua resignação, talvez encontremos aquele sobre o qual se perguntam uns e outros: qual será ou qual terá sido o seu legado?
Bento XVI viveu entre uma “Igreja-Prada” e uma outra, sem centros de poder, térrea, que puxava em milhares de diversas direções. Não surpreendeu a eleição do homem que chega do fim do mundo, e que se deu o nome de Francisco. Enquanto Papa, Ratzinger ainda vestiu as roupagens de uma Igreja-corrompida pelo poder. Francisco ousou vestir outro tipo de traje, roto, imundo, pobre, sem mordomias, sem privilégios, mas é evidente, passados 10 anos, que a “Igreja pobre para os pobres” continua a ser um horizonte cheio de paradoxos, contrastes e contradições.
Bento XVI e Francisco surgem como forças de uma igreja em trânsito, em processo de viragem, e em caminho, sobre um tabuleiro de ponte, e sem que ninguém saiba onde possa levar a estrada por fazer. Certo, talvez se possa dizer que a Igreja dos próximos tempos não será ou não poderá ser de todo “PODER”.
Mas dizia eu, que sempre admirei pessoas que se vivem e são fiéis ao que acreditam. Ratzinger, Bento XVI, sempre me pareceram uma só pessoa devotamente abandonada à “Verdade” que acreditavam. A “Verdade”, a “Caridade”, o abraço ao que distingue a Igreja de tudo o resto, foram o que sempre constituíram o bispo emérito de Roma, que faleceu. Mesmo no diálogo como outras comunidades cristãs ou religiões, Bento XVI viveu sempre convencido, no silêncio de si mesmo, que Cristo era o Alfa e Ómega, o ponto de convergência, no final, de toda e qualquer dialética. Nunca foi um homem do teatro ou da dança, como o Papa João Paulo II, ou o homem que erguia festejos entre os mais pobres dos pobres, mas foi um verdadeiro guardião da fé, que à imagem do apostolo Paulo, procurou ser fiel ao evento da ressurreição de Jesus de Nazaré: o seu central evento e centro de gravidade. E por fim, o homem que terá aprendido, no exercício do poder, que a humildade e o silencio-recolhido, em situações-limite, são o testemunho mais sapiente de todos, e porventura o maior dos legados.