Um sistema de saúde precário, a pobreza e as restrições às mulheres estão a criar um cenário de crise humanitária no Afeganistão, segundo um novo relatório da organização Médicos Sem Fronteiras (MSF), intitulado “Persistent barriers to access healthcare in Afghanistan”. “Às vezes as mães estão tão desnutridas que não conseguem ter leite para dar de mamar aos filhos. Vemo-las a pôr chá em garrafas para dar a bebés recém-nascidos com apenas sete ou oito dias, o que pode ser bastante perigoso”, refere uma profissional dos MSF que integra a equipa da organização médico-humanitária no Hospital Regional de Herat, e cujo nome não é fornecido pelos serviços de comunicação da organização humanitária para sua proteção.
“Estou a dever imenso dinheiro que pedi emprestado para pagar o transporte”
“Quando o meu filho ficou doente, fomos a uma clínica privada e recebemos uma receita de medicamentos que custam 1.000 afeganes [cerca de 10,30 euros]. Não nos ajudaram. Também tentámos num hospital público próximo de nós, mas os médicos lá só nos deram meio blister de comprimidos, não toda a medicação [de que precisávamos]… Agora estamos aqui. O meu bebé está pior, e estou a dever imenso dinheiro que pedi emprestado para pagar o transporte”, contou uma mulher também não identificada para sua proteção, após chegar ao Hospital Regional de Herat, apoiado pelos MSF.
Cidadãos não conseguem pagar deslocações “sem se endividarem gravemente”
Segundo Filipe Ribeiro, representante dos MSF naquele país, “um dos principais problemas no Afeganistão é que os serviços de saúde nas periferias não estão bem equipados, nem têm os recursos ou pessoal adequado. Isto significa que as pessoas que vivem em áreas rurais têm de percorrer longas distâncias para aceder a tratamento de qualidade, apesar de frequentemente não conseguirem pagar essas deslocações sem se endividarem gravemente”.
“Mulheres já estão a enfrentar obstáculos mais significativos”
De acordo com os MSF, “mais de 60 por cento das pessoas inquiridas neste novo relatório disseram que as mulheres já estão a enfrentar obstáculos mais significativos no acesso a cuidados de saúde em comparação com os homens, maioritariamente em termos de restrições à circulação ligadas à prática sócio-cultural instituída há muito tempo, designada de ‘mahram’. Isto obriga as mulheres a estarem acompanhadas por um familiar do género masculino quando saem à rua, o que as pode impedir de chegar ao hospital – seja como pacientes, cuidadoras ou trabalhadoras humanitárias”.
“Tal impedimento pode concretizar-se de várias formas, por exemplo, quando nenhum familiar homem está disponível para as acompanhar ou quando uma deslocação cujos custos já são difíceis de suportar para uma pessoa se torna impossível se tiver de ser paga para duas pessoas”, explica a organização humanitária. Os MSF recordam que no final do ano passado, o governo do Afeganistão “anunciou a decisão de proibir as mulheres de trabalharem em organizações não-governamentais e de terem acesso a educação de nível universitário. Isto irá provavelmente agravar o acesso das mulheres a cuidados de saúde”.
“Se as mulheres não estão autorizadas a estudar, de onde virá a próxima geração de médicas?”
Filipe Ribeiro deixa o alerta. “Já é difícil em alguns dos nossos projetos ter pessoas para preencher todas as posições necessárias nas equipas, incluindo ginecologistas. Se as mulheres não estão autorizadas a estudar, de onde virá a próxima geração de médicas, parteiras e enfermeiras? As equipas da MSF nos nossos projetos de maternidade no Afeganistão providenciaram assistência em mais de 42.000 partos no ano passado, dos quais mais de 8.000 tiveram complicações obstétricas. Proibir as mulheres de aprender e trabalhar irá colocar em ainda maior risco as vidas das mães e das suas crianças”, refere o profissional.