Joseph Conrad, nascido polaco mas que se celebrizou como romancista a escrever em inglês, passou uns meses a navegar no rio Congo, um dos maiores de África, e o que testemunhou foi tão marcante que o levou a publicar o livro ‘Coração das trevas’, em 1899. Este relato, inspirado no ambiente de terror que se vivia em finais do século XIX no chamado Estado Livre do Congo, propriedade privada do rei Leopoldo II da Bélgica, continua um sucesso de vendas, denunciando os abusos do colonialismo europeu em geral, e acabou até por inspirar o filme ‘Apocalipse Now’, de Francis Ford Coppolla, estreado em 1979 e com o cenário transferido para o Vietname. Denúncias como a de Conrad foram-se tornando cada vez mais insustentáveis e em 1908 o Estado Belga assumiu o controlo do Congo, um território 77 vezes maior do que a metrópole europeia.
Passados 150 anos sobre as primeiras explorações no Congo ao serviço de Leopoldo II, por aventureiros como o britânico Henry Morton Stanley, o Congo, oficialmente República Democrática do Congo (RDC) desde 1997, continua uma terra de abusos, muito por causa da sua imensa riqueza. No final do século XIX, início do século XX eram sobretudo o marfim, a borracha e a madeira os materiais procurados, com os congoleses a serem obrigados a trabalhar por capatazes ao serviço de Leopoldo II até à exaustão total, muitas vezes a morte. Quem não cumpria quotas de produção podia ser amputado das mãos. Os números são difíceis de sistematizar, mas os historiadores apontam para dez milhões de mortos na época colonial. Hoje, as riquezas da RDC mais cobiçadas são o ouro, os diamantes, as madeiras e o coltan, mineral usado no fabrico de telemóveis. Grupos armados supostamente defensores de grupos étnicos minoritários ameaçados mas na realidade apoiados por países vizinhos atuam há mais de duas décadas no Leste do Congo financiando-se com estes tráficos e espalhando o terror entre a população. Um exemplo é o M23, movimento composto por tutsis e apoiado pelo Ruanda, que depois de ter em teoria abandonado a luta armada voltou a ser um problema para o governo de Kinshasa, uma capital que fica a mais de 2500 quilómetros de Goma, a cidade mártir nos Grandes Lagos da África Central.
A RDC voltou a estar recentemente no centro das atenções por ter sido visitada pelo Papa Francisco entre 31 de janeiro e 3 de fevereiro, que depois seguiu para o Sudão do Sul, onde ficou até dia 5. País de maioria católica, que são cerca de metade dos seus 100 milhões de habitantes, a RDC viu multidões rodearem o Papa em Kinshasa, mas este não foi por razões de segurança até Goma, deslocação que chegou a estar na agenda oficial do Vaticano. Mas os apelos à paz não deixaram de ser ouvidos, pelo menos pelo presidente Felix Tshisekedi, sobre quem se depositam muitas esperanças de iniciar uma nova era no país depois das duas décadas de governação da família Kabila. O pai do atual presidente, de seu nome Ettiene Tshisekedi, foi um opositor corajoso nos tempos da ditadura de Mobutu Sese Seko.
Independente desde 1960, o antigo Congo Belga enfrentou desde os primeiros tempos de soberania lutas políticas extremadas, separatismo no Katanga e intervenção militar estrangeira, até das Nações Unidas para tentar pacificar o país. O então secretário-geral da ONU, o sueco Dag Hammarskjöld, morreu em 1961 quando sobrevoava a Rodésia depois de uma missão no Congo para tentar um acordo entre rivais políticos, evento que se associou à imagem negativa do país que teima em perdurar. Nem o fim de 32 anos de ditadura de Mobutu, que nasceu Joseph mas acrescentou Sese Seko ao nome como parte de uma tentativa de africanização pouco conseguida, nem a construção do pós-Kabilas muda no essencial o drama da RDC: demasiada riqueza e pouca capacidade de protegê-la em benefício do povo. E tratam-se não somente de riquezas minerais, mas também de terras férteis, de recursos hídricos abundantes e até da segunda maior floresta tropical do mundo depois da Amazónia. Uma das figuras congolesas mais prestigiadas hoje é o ginecologista Denis Mukwege, Prémio Nobel da Paz de 2018, que tem denunciado as violações como arma de guerra no Leste do país. Foi contar o que sabia ao Papa no Vaticano, em vésperas da visita a África. Provavelmente, enquanto o Papa falava no início de fevereiro a um milhão de fiéis numa missa em Kinshasa, nas vizinhanças dos Grandes Lagos, as pilhagens, violações e mortes prosseguiam.
No ano passado, Filipe, rei dos belgas, de visita à RDC, pediu desculpas em Kinshasa pelo “paternalismo, discriminação e racismo” que marcou o domínio colonial. Nessa sua primeira viagem à antiga colónia desde que subiu ao trono em 2013, repetiu assim um lamento que tinha já exprimido em 2020, por ocasião dos 60 anos da independência. Um ato de reconciliação de aplaudir, o problema, do ponto de vista do povo congolês, é que sobre a tragédia de hoje ninguém expressa arrependimento.
Texto: Leonídio Paulo Ferreira, jornalista do DN