A Igreja de São Pedro, em Antakya, resistiu aos sismos que atingiram a 6 de fevereiro o sul da Turquia e o norte da Síria. Alguns poderão dizer que foi um milagre, tanta é a destruição que toda a antiga Antioquia sofreu e que se pode ver bem das alturas da montanha onde fica a igreja, mas aquilo que foi essencial, explica o jornalista turco Yusuf Selman Inanç, foi “estar numa zona rochosa, que aguentou melhor o tremer da terra. Também os bairros assentes na montanha foram aqueles que resistiram”. Inanç, que visitou Antakya logo a seguir aos sismos, o mais forte de 7.8 de magnitude, conta o que viu então nesta cidade que é capital da província turca de Hatay, entalada entre o Mediterrâneo e a Síria: “Cheguei a Hatay três dias depois do terremoto. Demorei oito horas para chegar de Adana a Hatay, o que geralmente leva três horas. Foi uma confusão. Ambulâncias, veículos militares e de construção estavam todos a caminho de Hatay. O engarrafamento era incrível. Quando cheguei, havia ainda pessoas sob os escombros, procurando ajuda. As equipas de resgate não conseguiram ter logo acesso a todos os prédios, pois os escombros bloqueavam as estradas. A ponte no centro estava cheia de cadáveres, à espera de serem identificados e sepultados”.
Foram 50 mil os mortos na Turquia, sobretudo nas províncias de Hatay e Gaziantep, e dez mil na Síria, país que desde 2011 vive uma guerra civil. Só na Turquia, calcula-se que 16 milhões de pessoas foram afetadas pelos sismos, um quinto da população do país. Cerca de dois milhões de pessoas ficaram desalojadas, estando instaladas provisoriamente, a viver em tendas montadas pela AFAD, a proteção civil turca. São em regra azuis, como as muitas que se veem a partir dos jardins da Igreja de São Pedro, que domina a cidade. Foi aqui que a equipa de resgate enviada por Portugal para ajudar a Turquia conseguiu salvar um rapaz de dez anos, que estava sob os escombros de um prédio.
Formalmente a Igreja de São Pedro é hoje um museu, apesar de, por pedido às autoridades, ser possível às diferentes congregações cristãs celebrar missas. A antiguidade da Igreja, na sua primeira forma de templo escavado numa gruta, está atestada em vários textos. Ali se reuniam ainda no século I os primeiros cristãos, procurando ser discretos para evitar as perseguições do Império Romano, que só 300 anos depois faria do Cristianismo a religião oficial. O apóstolo Pedro foi bispo de Antioquia antes de viajar para Roma, capital imperial, onde foi também bispo e portanto o primeiro Papa. Contudo, a fachada atual da Igreja de São Pedro na moderna Antakya data da Primeira Cruzada, que decorreu no final do século XII. Obras de recuperação foram levadas a cabo no século XIX, por iniciativa do Papa Pio IX, e financiadas pelo imperador francês Napoleão III, que tinha boas relações com o Império Otomano, então senhor de quase todo o Médio Oriente.
Se a fachada e o interior da Igreja, onde está o túmulo de Frederico Barbarrossa, (imperador alemão que morreu na Terceira Cruzada), resistiram aos sismos, ao contrário da mais antiga mesquita da cidade e da principal igreja ortodoxa, há quem note que a água que corre das paredes rochosas é agora menos abundante. Essa água tem sido ao longo de dois milénios bebida pelos crentes e também usada para batismos.
“Faremos tudo para preservar a Igreja de São Pedro, tal como todo o nosso património cultural”, diz Ayse Ersoy, uma das principais responsáveis culturais da província de Hatay e diretora do Museu Arqueológico que, alojado num edifício moderno, também resistiu aos sismos. “Provavelmente foi o edifício na zona plana da cidade que mais suportou os abalos. São poucos os danos e o pior aconteceu com os tetos falsos. O museu resistiu porque foi construído seguindo as regras antissísmicas”, realça Ersoy, feliz por os lindíssimos mosaicos da era romana não terem sido danificados.
Tirando os mosaicos instalados nas paredes, como aquele que conta a história de um pastor que foi aos Jogos Olímpicos da Antiguidade, foi campeão, e ganhou a cidadania romana, todas as obras estão agora protegidas, por causa das réplicas dos sismos. Até algumas peças arqueológicas de grande peso e volume, portanto inamovíveis, estão rodeadas de sacos de areia. A reconstrução da vida das pessoas da região passa por novas casas, mas também pelo regresso dos turistas que animavam a economia daquela zona. Património como a Igreja de São Pedro ou o Museu de Arqueologia estão entre os grandes atrativos, a par das praias e da gastronomia.
Se a maioria das pessoas em Antakya perdeu a casa – mesmo os edifícios de pé estão tão danificados que terão de ser demolidos, Ersoy teve a sorte de a sua não ter sido destruída. Naquele dia terrível, com o primeiro sismo de madrugada com epicentro perto de Gaziantep e depois o segundo à hora do almoço a sentir-se fortemente na província de Hatay, a sua primeira reação foi logo ir para o museu. Ali está aquela que é considerada uma das melhores coleções de mosaicos romanos do mundo. E pelo caminho ligou para Ancara, a pedir segurança para o edifício, uma construção moderna, inaugurada em 2014.
“Acreditamos que vamos ter o museu em condições e toda a nossa maravilhosa coleção disponível ao público no verão do próximo ano. Espero que nos venham visitar. Temos tanta história”, apela a diretora do museu arqueológico. O esforço de reconstrução pelo Estado turco está a ser enorme e depois de fortes críticas à primeira resposta das autoridades em fevereiro, hoje há progressos visíveis. A vida nas tendas ou nas Kotayner Kemp, “cidades de contentores”, vai-se organizando e a esperança renasce. Nas eleições legislativas de 14 de maio o partido governamental AKP, islamo-conservador, voltou a vencer e no mesmo dia as presidenciais deram 49 por cento dos votos a Recep Erdogan, que ficou à beira da reeleição (A segunda volta, que opôs Erdogan ao laico Kilicdaroglu do CHP, realizou-se já depois do fecho desta edição).
Um grupo de crianças joga futebol junto da Igreja de São Pedro, já com a noite a cair. Dois estão com uma t-shirt com a efígie de Mustafa Kemal Ataturk, o fundador da moderna República da Turquia em outubro de 1923, sobre as cinzas do Império Otomano. “São crianças de famílias que estão a viver em tendas nos jardins da Igreja”, explica a diretora do museu. Há promessa de 600 mil casas construídas nos próximos tempos, e meio milhão no prazo de um ano depois dos sismos. Se acontecer, aí sim, há quem fale em milagre. Para estes miúdos, tal como para todas as pessoas a viver em tendas em Antakya, a vontade é acreditar que sim.
Destruição nas margens do Orontes
Em Antakya, três meses depois dos sismos já muitos edifícios foram demolidos, mas os que continuam de pé estão na grande maioria à espera também dos buldózeres, pois não têm condições de segurança. Ao longo do rio Asi (ou Orontes), já de noite, não há luzes nos prédios. Parece uma cidade fantasma. Os únicos sinais de vida são os carros que passam de vez em quando e as luzes das bombas de gasolina e de um pequeno café autorizado a manter-se aberto mesmo com as paredes dos andares superiores esventradas. Junto a um centro comercial semidestruído, o Mudjit Mall, militares garantem que ninguém cede, em desespero, à tentação da pilhagem, pois o recheio das lojas continua lá. Na fachada, o letreiro da Starbucks está completo, mas ao da Toys R Us faltam letras.
Houve um bairro na zona montanhosa da antiga Antioquia cujas casas resistiram por estarem assentes em rocha. São as poucas luzes que se veem. De resto, tudo vazio e tendas e contentores por todo o lado. A proteção civil turca, designada por AFAD, está a apoiar as populações que depois de fazerem luto pelos familiares se preocupam agora com o futuro. Há quem esteja a viver em tendas junto da antiga casa, outros que foram instalados em parques e todo o género de espaços abertos. Também há as ‘Kontayner Kemp’, as “cidades de contentores”.
Texto: Leonídio Paulo Ferreira, jornalista do DN