As alterações climáticas, que constituem, já hoje, o nosso “aqui e agora”, têm vindo a colocar no centro da agenda política dos povos (não sem a resistência de muitos) o planeta terra, como têm vindo a relembrar, como o diz Bruno Latour no seu livro, Face à Gaïa, que o ser humano é também ele “geologia”. Se durante milhares de anos (Holocene), homem e terra se concebiam ligados um ao outro, como sendo parte de uma mesma origem e matéria (earthbound), com o iluminismo, e mais tarde com a revolução industrial, esta relação não só se quebra, dando lugar a uma separação cada vez mais vincada entre os dois, como a supremacia de um sobre o outro se afirma na relação de sujeito e objeto – como se o sujeito-pensante fosse “razão pura” de um outro e sofisticado universo, e a terra um indiferente, inanimado e insensível objeto.
Ao contrário do que há uns trezentos anos se podia pensar sobre a terra, hoje, as alterações climáticas provam que a terra é um secular agregado de agentes políticos (Gaia), bem para lá do que o termo “natureza” possa alguma vez significar, e que o ser humano, com a sua cultura, não está feliz e orgulhosamente só, no posto de comando, como o possa ter pensado, seja como guardião do planeta azul ou como engenheiro-mestre de uma nave espacial.
Porque a intervenção humana sobre a terra tem por parte de todos os que a constituem e habitam uma reação, seja ela positiva ou negativa, o que esta revela é que estamos de facto diante de um plural agente político de direito próprio, que está bem para lá de nós mesmos, retirando-nos efetivamente poder, obrigando-nos, por conseguinte, à sua partilha. Há quem ainda hoje defenda, com referência às mais variadas tradições religiosas ou narrativas mitológicas, de que o ser humano se distingue de todos os outros, e que a este foi dado um lugar central numa particular história da criação. Mas é tal a sua pequenez e contingência face ao planeta que habita e à dimensão do cosmos, onde vive suspenso, que o facto de poder dar um nome a tudo o que o rodeia não lhe garante mestria sobre a vida ou a morte, a ordem ou o caos. Por isso Latour defende a representatividade de Gaia, de todas as suas forças, nas assembleias de governo dos povos. Gaia, com todos os seus seres, tem hoje e sempre de ter assento no parlamento de todas as formas de governo político.
Não nos é dado saber que tipo de governo deve presidir aos destinos da terra, mas é claro que esta época feita de intervenção humana (Anthropocene) é causadora, por via da máquina, das tecnologias e da ganância económica por detrás delas, de um estado das coisas que faz aproximar o ponteiro do relógio do nosso próprio extermínio. Se o ser humano vai ter de continuar a dar um nome às coisas e aos seres que o rodeiam, então, para que tal aconteça, o caminho terá de ser, necessariamente, o de favorecer, promover e defender a sua existência, já que nomear, chamar, significa cuidar, zelar, proteger. Há espécies ameaçadas, outras que já se perderam, outras ainda que não se conhecem, e que ainda não se puderam chamar por nome. O estudo da condição humana tem ultimamente feito luz, num mundo de uma penumbra arrogante e prepotente, do que podíamos apelidar de “gentileza”, como a que, num cartoon, um menino deseja para si, quando uma toupeira, sua amiga, lhe pergunta o que gostaria de ser quando fosse grande.