Viajar tornou-se algo de banal nos dias de hoje, mesmo para um Papa, e Francisco, que neste início de agosto volta a Portugal para a Jornada Mundial da Juventude (JMJ) em Lisboa, tem dado boas provas disso, pois nesta sua primeira década de pontificado fez já 40 viagens apostólicas, visitando mais de 60 países. É uma consciente aposta papal no contacto com um catolicismo que é cada vez mais global, com a Europa a ter hoje somente um quinto dos 1400 milhões de crentes a nível global.
Mas na verdade, não foi sempre assim em termos de viagens dos sucessores de São Pedro. Aliás, Papas ousarem aventurar-se fora de Roma e das terras italianas (tirando o período no século XIV em que a francesa Avinhão se tornou a sede papal) foi uma exceção até tempos bem recentes.
É verdade que alguns Papas dos primórdios do cristianismo visitaram Constantinopla e que no século VIII Estevão II se tornou no primeiro Papa a ir a norte dos Alpes para um encontro com Pepino, o Breve, o pai do futuro imperador Carlos Magno. Mas eram raras historicamente as deslocações para fora de Roma e, sobretudo, para fora de Itália, até que a 4 de janeiro de 1964 Paulo VI iniciou uma nova era no Vaticano, tornando-se com a sua viagem à Terra Santa (Israel, Territórios Palestinianos e Jordânia) o primeiro Papa não só a sair da Europa como também a voar, no caso, um avião da Alitalia, como se tornou tradição com os seus sucessores. Paulo VI acabou por visitar países dos cinco continentes durante os seus 15 anos de pontificado (1963-1978), e em 1967 esteve em Portugal, para a celebração dos 50 anos das aparições de Fátima.
João Paulo I, efémero Papa em 1978, não teve oportunidade de seguir o exemplo de viajante do seu antecessor, mas depois veio João Paulo II, que se revelou um peregrino global. No seu pontificado, bastante longo pois durou de 1978 a 2005, fez 104 viagens fora de Itália, a 129 países, muitos deles várias vezes (por exemplo, esteve nove vezes na Polónia, a sua pátria, e esteve em Portugal três vezes). Primeiro Papa não italiano em 400 anos, João Paulo II fez tanto do mundo a sua casa que se calcula que percorreu nas viagens de avião mais de um milhão de quilómetros. Todos os países lusófonos foram visitados, incluindo Timor-Leste, em 1989, então sob ocupação militar pela Indonésia.
As estatísticas revelam que como viajante papal, João Paulo II continua imbatível: as suas viagens são em número superior às dos seus sucessores somadas. Mas Bento XVI, o alemão que foi Papa de 2005 até resignar em 2013, também se revelou um sumo pontífice com vontade de levar a sua mensagem o mais longe possível, realizando 24 viagens apostólicas fora de Itália, uma delas a Portugal, em 2010.
Francisco, que ao ser escolhido pelo conclave de cardeais em março de 2013 após a abdicação no mês anterior de Bento XVI, tornou-se o primeiro Papa de fora da Europa em mais de mil anos e o primeiro de sempre oriundo das Américas, tem-se mostrado igualmente adepto das viagens. Curiosamente, a primeira que fez (já com Jorge Mario Bergoglio como Francisco) foi no âmbito de uma JMJ, em julho de 2013, no Rio de Janeiro. Foi um verdadeiro banho de multidão para o novo Papa, e são históricas as imagens da missa na praia de Copacabana. A rivalidade histórica entre a Argentina, país de nascimento do Papa, e o Brasil, local da jornada, desapareceu quase que como se tratasse de um milagre e, provavelmente, nunca um argentino foi tão acarinhado no Brasil, embora quando a viagem foi preparada se pensasse que seria o alemão Bento XVI a fazê-la.
As viagens seguintes de Francisco ocorreram já em 2014, e todas elas têm leituras muito interessantes, revelando algumas das grandes linhas do pontificado. Assim, em maio visitou Israel, os Territórios Palestinianos e a Jordânia, uma viagem a relembrar a primeira de Paulo VI e com um significado muito especial por se tratar da Terra Santa – sagrada para cristãos, muçulmanos e judeus – onde a paz tarda em chegar e as três grandes religiões monoteístas se envolvem em conflito umas com as outras. Em Jerusalém, Francisco encontrou-se com Bartolomeu, patriarca de Constantinopla (Istambul), a figura máxima da Igreja Ortodoxa. Ambos assinalaram o meio século do encontro na mesma cidade do Papa Paulo VI e do patriarca Athenagoras.
Em agosto de 2014, a viagem papal foi à distante Coreia do Sul, onde o catolicismo chegou por via da curiosidade intelectual e não pela colonização – como nas Filipinas (onde em 2015 Francisco juntou seis a sete milhões de pessoas numa missa em Manila). Em setembro de 2014, seguiu-se a Albânia como destino, um país que esteve muito fechado durante o comunismo e onde os católicos são uma minoria hoje. Em novembro do mesmo ano, uma visita de um dia a Estrasburgo, cidade francesa que aloja o Parlamento Europeu, foi um sinal de apoio ao processo de integração europeia, que tem garantido a paz na Europa Ocidental desde o fim da Segunda Guerra Mundial. Ainda nesse mês, Francisco visitou a Turquia, país hoje de maioria muçulmana, mas historicamente com grande importância para o cristianismo. Nessa ocasião, o Papa teve a oportunidade de se voltar a encontrar, agora em Istambul, com o patriarca Bartolomeu.
Nesta década de pontificado, só em 2020 não houve viagens papais para fora de Itália, consequência da pandemia da covid-19. Mas assim que houve uma melhoria na situação sanitária a nível mundial, Francisco visitou em março de 2021 o Iraque, tornando-se no primeiro Papa a pisar o solo deste país árabe de maioria muçulmana, mas com uma importante comunidade cristã que, porém, tem vindo a diminuir por violência das últimas décadas, desde guerras a terrorismo jihadista, a empurrar muitos dos seus membros para a emigração com destino ao Ocidente.
Apesar de problemas vários de saúde, e ocasionais hospitalizações, Francisco continuou a viajar em 2022, com uma emblemática visita em setembro ao Cazaquistão para em Astana participar numa reunião de líderes religiosos mundiais. Já em finais de janeiro, inícios de fevereiro de 2023 Francisco ousou uma corajosa viagem à República Democrática do Congo (antigo Congo Belga, ex-Zaire) e ao Sudão do Sul. Em ambos os países, assolados por guerras, o Papa fez um apelo à concórdia, lembrando que sem a paz nenhum povo resolve os seus problemas. Tanto em Kinshasa como depois em Juba multidões ouviram a missa papal.
Antes desta deslocação a Portugal, Francisco esteve na Hungria em abril. Em setembro está programada uma visita à Mongólia, a primeira de um Papa. O país, encravado entre a Rússia e a China, só tem 1500 católicos, mas a presença de Francisco será mais um sinal do quanto universal a Igreja Católica ambiciona ser, fazendo, aliás, justiça ao seu nome, que vem do grego “katholikos”, que significa exatamente “universal”. Outro grande sinal dessa universalização desejada é a composição do colégio de cardeais que elegerá um dia o sucessor de Francisco. Como já foi anunciado, em finais de setembro serão criados 21 novos cardeais, incluindo um português, o atual bispo auxiliar de Lisboa, Américo Aguiar. Nesse momento, o colégio cardinalício verá mais reforçado o seu universalismo, com a Europa a perder de novo força, mesmo que ainda tenha, no que diz respeito aos cardeais com direito de voto, 38 por cento do total. Quando Francisco foi eleito ainda havia uma maioria de cardeais europeus envolvidos na decisão, 52 por cento, apesar de já então os católicos europeus serem apenas 24 por cento do total de crentes no catolicismo.
Dois grandes países continuam por incluir nas visitas papais: a China e a Rússia. No primeiro caso, não existem relações diplomáticas entre o Vaticano e a República Popular da China, pois o governo de Pequim quer ter a palavra final na nomeação dos bispos. No segundo caso, apesar de Francisco já ter recebido o presidente Vladimir Putin no Vaticano, uma viagem agora ao grande país ortodoxo, no contexto da guerra na Ucrânia, está condicionada às possibilidades de uma eventual mediação papal, sendo que o Vaticano já deixou bem claro que a haver visita a Moscovo ou Kiev terá de ser a ambas.
Há um outro grande país que embora já tenha recebido visitas papais de Paulo VI e de João Paulo II nunca acolheu Francisco: a Índia. A data de 2024 foi apontada como provável para Francisco finalmente conhecer o país asiático com mais católicos a seguir às Filipinas, uns 20 milhões de pessoas, a grande maioria com apelidos portugueses como Fernandes ou Rodrigues, um legado da presença colonial portuguesa em Goa e outras partes da Índia, assim como da ação missionária. Também por visitar por Francisco está a Argentina, a sua pátria. Desde que viajou de Buenos Aires para Roma há dez anos, para participar na eleição que o tornou Papa, nunca mais voltou ao país. A imprensa argentina diz que acontecerá no próximo ano, com Francisco sempre muito cauteloso na questão das datas para evitar aproveitamento político das suas visitas.
Texto: Leonídio Paulo Ferreira, Jornalista do DN