Quando se fala do consumo de drogas na UE, de onde é que vem essa droga, maioritariamente?
Para caracterizar a situação da droga na Europa, são três as palavras em inglês: Everywhere, Everything, Everyone. Vou traduzir: em todo o lado, todas e todos. Em todo o lado, porque hoje temos drogas por todas as partes na UE. Aliás, nunca tivemos tanta droga como a que temos hoje. Nunca tivemos tanta droga a chegar de todas as partes do mundo. E há a parte da droga produzida no território da UE. Por exemplo, a UE, tornou-se o único produtor mundial de ecstasy, o que significa que até o ecstasy consumido na Nova Zelândia é produzido no território da UE. A segunda característica, quando digo todas, é que hoje não serve mais a antiga distinção entre droga dura e leve, ou droga de origem vegetal e química, ou lícita e ilícita. Porquê? Porque são muitas as substâncias, inclusive as que ninguém pensava que algum dia poderiam ser o objeto de uma conduta aditiva. E a terceira palavra, todos, ilustra que hoje somos todos nós que podemos encontrar, conhecer ou viver uma experiência de um episódio crónico ou momentâneo de conduta aditiva, com várias substâncias, inclusive o álcool. E por outro lado, o que é ainda mais novo, é que hoje todos podemos conhecer, diretamente ou indiretamente, os efeitos da violência relacionada com a produção, o tráfico ou o consumo de drogas.
Quando vemos as notícias das apreensões recordes de cocaína, associamos que a cocaína é a grande droga e a América Latina o grande fornecedor da Europa. Há ainda uma parte de verdade nisto?
Há uma parte de verdade. Falamos muito de cocaína hoje. E temos boas razões. Só que é um pouco como a árvore que está a esconder a floresta. Falamos muito de cocaína, porque há muita cocaína a chegar à Europa, mas isso não nos pode deixar esquecer os problemas com outras drogas, como a canábis. Só em 2022, as apreensões de canábis na Europa alcançaram 816 toneladas de haxixe. É muitíssimo. Vem da África do Norte. Também temos grandes quantidades de drogas sintéticas, parte delas produzidas sobre o território da UE, e outras, as novas substâncias, que estão a vir da China e da Índia. Voltando à cocaína, esta tem só uma origem vegetal, não há origem puramente química. E para produzir cocaína são precisas as folhas de coca. Por isso, os três maiores cultivadores de coca são o Peru, Bolívia e Colômbia. As folhas de coca são transformadas com o uso de alguns produtos químicos para produzir a pasta base e, depois, noutra etapa de transformação química, produz-se o que chamamos de cloridrato de cocaína ou cocaína. E desde que o governo colombiano iniciou as negociações de paz com as FARC, a produção de coca, e logo de cocaína, aumentou mais ou menos 35 a 38 por cento.
São os grupos dissidentes das FARC, guerrilheiros marxistas, que continuam na selva a fazer o narcotráfico os responsáveis?
Acho que o que tem acontecido é que antes, obviamente, havia uma pressão das forças armadas – também com consequências negativas para os direitos humanos em alguns casos – mas havia uma pressão militar, não só da polícia, e essa pressão desapareceu para permitir o diálogo de paz, e isso foi considerado uma oportunidade pelos grupos criminosos organizados, dissidentes das FARC ou não, que aproveitaram para desenvolver mais produção.
Isso explica esta invasão da Europa por cocaína?
Em parte, sim. Mas aconteceu também o seguinte. Quando começou o aumento da produção de coca, e logo de cocaína, o mercado da cocaína estava quase saturado nos Estados Unidos da América (EUA).
E os EUA tinham vindo a alertar outros países de que isso ia acontecer um dia. Demorou quase 25 anos para vermos esta quantidade enorme de cocaína chegar à Europa. Há uma enorme disponibilidade de produto, uma oferta enorme, e se um mercado fica saturado, procuram outros mercados para desenvolver. Por isso temos muito mais cocaína a chegar à Europa.
Falou do ecstasy fabricado na Europa. As drogas químicas competem no mesmo mercado que a cocaína?
Depende dos grupos de substâncias também. Falando da cocaína, há oito ou dez anos, identificámos a existência de um mercado europeu de estimulantes. Então, quais são os estimulantes? Cocaína, sim. Mas em alguns países pode ser ecstasy, pode ser anfetaminas. E numa muito pequena minoria de países era metanfetamina. Historicamente esse consumo era só na República Checa e, um pouco por contágio, na Eslováquia. Essa era a situação. E este mercado dos estimulantes, como funciona? Ou funcionava? Pois a gente que gostava, preferia consumir substâncias estimulantes, fazia-o em consonância com a disponibilidade. Quer dizer, os países da frente atlântica, por onde estava a chegar a cocaína, andavam a consumir cocaína. Em países que, desde sempre, têm uma tradição de consumo de ecstasy, como a Holanda ou a Bélgica, estavam a consumir essa substância. Nos países bálticos era um pouco diferente e, depois, a República Checa. Essa era a situação até há quatro ou cinco anos, para os estimulantes. E, obviamente, ecstasy, anfetamina, metanfetamina, a produção é química. Agora, há outro grupo de substâncias químicas, são o que chamamos de novas substâncias psicoativas, NPS. E por que chamamos de novas substâncias? Porque não são aquelas que já vêm mencionadas nas listas anexas nas convenções da Organização das Nações Unidas (ONU). Portanto, ainda não são oficialmente ilegais. Temos enormes quantidades de substâncias químicas vindas da China ou da Índia e muitas vezes com grande potência. Muitas vezes substâncias que nunca tinham aparecido no mercado europeu. E também se desconhecem, em muitos casos, as próprias propriedades e os riscos, por exemplo, em termos de toxicidade.
Essas NPS nunca tiveram uma utilização medicinal prévia?
A maioria delas não. Algumas têm. Por exemplo, a ketamina, que é também um anestésico que se pode utilizar em medicina veterinária, mas também que se usa como anestésico barato na África.
A UE também é afetada pelo fentanil que tanto preocupa os EUA?
O fentanil é um opioide sintético usado principalmente como analgésico. É extremamente potente e representa um risco de intoxicação e de morte (50 vezes mais potente que a heroína e 100 vezes mais potente que a morfina). Mesmo se a heroína continua a ser o opiáceo ilícito mais consumido na Europa, existe também uma preocupação crescente com o consumo de opiáceos sintéticos tais como o fentanil. São necessárias apenas pequenas quantidades para produzir milhares de doses, o que torna estas substâncias muito mais lucrativas para os grupos do crime organizado. Em comparação com a América do Norte, os novos opiáceos sintéticos (por exemplo, os derivados do fentanil e os nitazenos) desempenham atualmente um papel relativamente pequeno no mercado de droga europeu.
Entre os dois grandes mercados, a Europa e os EUA, há diferenças de consumo?
Acho que hoje todos os países e todas as regiões do mundo potencialmente são mercados. E há uma parte da cocaína que está a chegar à UE que só está a transitar, antes de continuar para outras regiões do mundo.
Estamos a falar de que zonas do mundo?
Qualquer zona, o Médio Oriente, os Balcãs, a Europa do Leste, mas também há circuitos de tráfico que podem seguir para a África ou a Ásia. De qualquer forma, a mudança que foi acelerada pela pandemia da covid-19, é o facto da maioria das drogas hoje serem transportadas por contentores em grandes barcos, por grandes linhas de transporte marítimo comercial.
A UE – os seus 27 países têm esta agência sediada em Lisboa, que o senhor lidera desde 2016 – coopera para lutar contra a droga. Existe algum tipo de cooperação eficaz que ultrapasse a UE?
Há vários tipos de cooperação. O exemplo mais importante, é a nível da ONU. Por exemplo, em 2016, teve lugar em Nova Iorque o UNGASS, que é a United Nations General Assembly Special Session Drugs. Nessa reunião, pela primeira vez, houve uma posição comum de todos os Estados-membros da UE, e naquela altura éramos 28, ainda estava o Reino Unido. Essa declaração foi apoiada por mais de 50 outros países. O resultado foi uma declaração final onde quase todos os pontos da posição europeia foram adotados. Outro nível de cooperação é a existência de um diálogo sobre drogas entre a UE e alguns países ou algumas regiões do mundo. Há três anos, teve lugar pela primeira vez um diálogo entre a UE e a China. No início de março vamos ter a reunião entre a UE e os EUA para o diálogo sobre drogas. Houve em dezembro, um diálogo entre a UE e a Colômbia. Então, há vários diálogos e a nosso nível também agora começámos a ter acordos de cooperação bilaterais com alguns países.
Na América Latina as máfias afetam a segurança cidadã e muitas vezes até desafiam o poder político. Quando diz que a UE está inundada de drogas, já podemos ver sinais de mais criminalidade?
Sim. Quando falo de violência relacionada com a droga, essa forma parte da realidade de todos os países da UE. Como mencionou recentemente a comissária Johansson, um dos eventos, porque há muitos e quase todos os dias, foi a morte de uma menina de 11 anos há um ano. Ela estava na sala de jantar com a família e faleceu de uma bala perdida na periferia de Antuérpia. Mas isso aconteceu também já em Marselha. E a comissária europeia referiu que 50 por cento dos homicídios na UE são relacionados com o tráfico de drogas.
Ao ponto de ameaçar o Estado?
Ainda não, mas precisamos de ser muito ativos para evitar isso. Por exemplo, na Bélgica, no ano passado, o ministro da Justiça estava a voltar de uma reunião oficial e foi desviado para um lugar protegido com toda a família porque havia um contrato de kidnapping pela máfia que é ativa na Holanda.
Texto: Leonídio Paulo Ferreira, jornalista do DN