“Portugal é considerado pioneiro na abolição da pena capital. A Carta de Lei que aboliu a pena de morte foi adotada em 1867 e encontra-se no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, em Lisboa. É um dos primeiros exemplos de apelos à abolição definitiva da pena de morte num sistema jurídico. Já menciona valores que continuam a desempenhar um papel na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia até hoje”, explica o alemão Helmut Ortner, que se deslocou a Lisboa para apresentar o seu livro ‘Uma breve história da pena de morte’, publicado em Portugal pela editora ‘Alma dos Livros’.
Sentado no café da Bertrand do Chiado, livraria lisboeta do século XVIII considerada a mais antiga do mundo, Ortner conta como começou a ser defendida a abolição da pena de morte a nível mundial, ainda que indiretamente: “Abolicionismo significa literalmente abolição ou fim. E historicamente falando, esta ideia foi dirigida contra a escravatura nos Estados Unidos da América (EUA) a partir de cerca de 1780. Muitas pessoas, a nível social e político, adotaram esta ideia que é principalmente acerca de pensar sobre outras formas de violência estatal. Por outras palavras, renunciar à contra-violência, à vingança e à definição habitual de culpa. Em vez disso, mais equilíbrio, diálogo e compreensão… Uma ideia muito louvável, mas muitas pessoas têm, ainda hoje, dúvidas sobre se isso funcionará na realidade”.
Mas se o filósofo italiano Cesare Beccaria, no livro setecentista ‘Dos delitos e das penas’, já se mostrava na Europa um campeão do abolicionismo, por questões morais, a maioria dos pensadores, e dos governantes, limitava-se, até acontecer a decisão portuguesa, a pensar em formas de atenuar o sofrimento do condenado, a procurar humanizar a execução, que consoante a época e o país podia ser por apedrejamento, empalamento, enforcamento, fusilamento ou guilhotina.
“A crença em fazer uma coisa humanitária sempre foi uma motivação para novos métodos de execução. Seja a morte por eletricidade na cadeira elétrica, seja a morte por asfixia na câmara de gás, seja pela injeção letal de hoje. O médico francês Joseph-Ignace Guillotin, que inventou a guilhotina, viu-a como uma humanização da pena de morte. O princípio da igualdade perante a morte e da morte confiável foram considerados um progresso humano. No meu livro descrevo esta história da morte pelo Estado, que sempre foi uma história de reformas. Do apedrejamento à forca, do tiroteio à injeção letal de hoje”, esclarece Ortner, nascido na Baviera em 1950 e desde há muito a viver em Frankfurt, no norte da Alemanha.
Portugal foi pioneiro, mas hoje a Europa toda ela é a campeã da causa abolicionista. Diz o autor que tal se justifica porque “a Carta Europeia dos Direitos Humanos rejeita fundamentalmente a pena de morte porque é uma forma de punição cruel e desumana. A pena de morte contradiz a nossa visão da humanidade e a nossa cultura jurídica. Nenhum país que questione estes princípios pode ser ou tornar-se membro da União Europeia. É uma das conquistas centrais que, no passado, começou em Portugal”. Mas noutras latitudes, há também um processo abolicionista em curso: “a tendência global para a abolição da pena de morte é visível: 112 países retiraram a pena de morte das suas leis para todos os crimes. Além disso, existem outros países que apenas aplicam penas de morte para ‘crimes especiais de Estado’, como terrorismo ou espionagem, mas já não para crimes comuns”.
Alerta Ortner, que, “por outro lado, os Estados ditatoriais e fundamentalistas religiosos, em particular, executam um grande número de sentenças de morte. Há números assustadores, especialmente nos últimos anos. Em muitas ditaduras e autocracias, a pena de morte faz parte do sistema de justiça criminal e não apenas no caso de homicídio. Oponentes políticos, até mesmo ‘blasfemos’ e infiéis, também são executados. Não existem quaisquer procedimentos legais. Só na China são executadas mais pessoas do que no resto do mundo todo. Segue-se o Iraque, Irão, Coreia do Norte e Arábia Saudita. Jovens com menos de 18 anos podem ser acusados e condenados. Nestes países, o Estado torna-se o carrasco”.
O autor alemão fala de ditaduras e do número recorde de execuções, mas democracias como os Estados Unidos da América e o Japão mantêm a pena de morte. “A proporção da população dos EUA que apoia a pena de morte tem diminuído constantemente ao longo dos anos. Trinta e sete dos 50 estados já aboliram a pena de morte ou não a utilizam há anos. O número de execuções também está a diminuir devido aos elevados custos: segundo a Amnistia Internacional, cada sentença de morte custa em média cerca de 20 milhões de dólares americanos. Custa apenas uma fração disso albergar um criminoso pelo resto da vida. No entanto, o facto é que, especialmente nos estados do sul dos EUA, ninguém consegue tornar-se governador se apelar publicamente à abolição da pena de morte. No Japão, são executadas muito poucas sentenças de morte; nos últimos dois anos houve menos de dez execuções, todas por enforcamento. Tal como nos EUA, as pessoas condenadas à morte por vezes esperam décadas pela sua execução. Grupos de direitos humanos criticam o facto de os reclusos condenados à morte não serem informados do momento da sua execução, considerando isso particularmente cruel. Quando a ordem de execução chega do Departamento de Justiça, a maioria tem apenas algumas horas de vida. O seguinte aplica-se a ambos os países: é um reflexo de vingança coletiva, combinado com a crença de que pode eliminar o mal do mundo. Nos EUA, a maioria dos republicanos continua a ser um defensor fervoroso da pena de morte. No entanto, há um acalorado debate público sobre a abolição e a eficácia da pena de morte. No Japão é diferente: os partidos e políticos conservadores aderem à pena de morte – e aqui falam pela maioria da população japonesa. Não há debate social. O assunto é quase um tabu. O meu livro também foi publicado numa tradução japonesa e fui convidado por uma associação de criminologia para dar palestras e fazer leituras lá. Tive de perceber que este país inovador e tecnicamente avançado ainda adere às ideias jurídicas tradicionais – uma mistura de vingança, culpa e vergonha”, explica Ortner.
Hoje as principais religiões são moralmente contrárias à pena de morte. E o Papa Francisco tem sido muito claro na condenação da pena capital. Segundo Ortner, “durante séculos, a tortura e a execução foram realizadas por ordens superiores ‘pela mão de Deus’. Os fanáticos religiosos executaram as sentenças mais cruéis sob a orientação dos seus líderes. Em quase todas as religiões havia punições draconianas, incluindo assassinatos rituais, para não-crentes e apóstatas. Pensemos nos julgamentos da Inquisição e na queima de bruxas. Hoje as igrejas cristãs rejeitam a pena de morte. É um passo em frente! Mas no mundo muçulmano de hoje, pessoas estão a ser mortas por ‘blasfemarem’ o nome de Alá”.
Sobre a questão da eficácia da pena de morte no combate à criminalidade, Ortner é claríssimo: “Todos os estudos científicos fornecem provas impressionantes de que a pena de morte não tem um efeito dissuasor. A pena capital não impede o homicídio”. Talvez por isso, ou por repulsa da opinião pública, os novos partidos populistas ou de extrema-direita na Europa não apoiam o regresso à pena de morte. “Eles exigem um sistema de punição rigoroso e consistente, mas a pena de morte não é exigida em parte alguma”, afirma Ortner, que tem publicados em Portugal dois outros livros, ambos também pela editora ‘Alma dos Livros’: ‘O executor’ e ‘O homem que tentou matar Hitler’.
Texto: Leonídio Paulo Ferreira, jornalista do DN