Não, não fiz nenhuma promessa. Sim, podia perfeitamente ter ido a Fátima de carro. E sim, já sabia que ir a pé – mesmo tendo escolhido percorrer o Caminho Poente, a mais curta de todas as rotas marcadas – não ia ser fácil.
Até porque a primavera mais parecia verão e a previsão era de céu limpo para os dois dias em que nos propusemos, eu e o meu marido, calcorrear os 54 quilómetros que separam o Sítio da Nazaré do Santuário de Fátima. Previ o calor, o cansaço, as dores nas pernas e nos pés, uma ou outra bolha… Antevi até a vontade de desistir a meio. Mas fui. Fomos. Porque também sabia – não somos novos nestas andanças – que valeria a pena. Os meus pés, a minha mente, e sobretudo o meu coração, precisavam de pôr-se a caminho.
Na verdade, até preferíamos ter percorrido uma distância maior (em anos anteriores, partimos dos arredores de Lisboa, e também já fomos a pé de Ponte de Lima a Santiago de Compostela), mas desta vez a complicada logística familiar e os compromissos profissionais não nos deixavam margem suficiente para que parássemos (ou melhor, “parássemos”) mais do que dois dias.
O importante é que fomos. Apesar de sabermos que valeria a pena, e que precisávamos mesmo de ir, teria sido tão mais fácil, e confortável não irmos, adiarmos, deixarmos para uma altura mais propícia… Altura essa que provavelmente nunca chegaria. Ainda bem que nos deixámos de desculpas e procurámos soluções. Um feriado junto ao fim de semana foi a janela de oportunidade perfeita, porque na realidade precisávamos de pelo menos três dias, contando com o dia anterior ao início da peregrinação, para podermos ir de autocarro até ao ponto de partida, dormir, e começar o caminho propriamente dito na madrugada seguinte.
Ir de véspera permitiu-nos não só começar a caminhar no dia seguinte bem cedo (o que é muito importante, para aproveitar as horas de menor calor e para não chegar demasiado tarde ao local de pernoita), como assistir ao pôr do sol único da praia da Nazaré, que está na origem da escolha do nome “Caminho Poente”.
Pôr do sol na praia da Nazaré. Foto © Clara Raimundo/7MARGENS
Há até quem faça este caminho ao “contrário” – ele está marcado nas duas direções –, e lhe chame a “Finisterra Portuguesa”, referindo-se ao percurso de cerca de 100 quilómetros que liga Santiago de Compostela ao Cabo Finisterra, na Galiza (Espanha), e que muitos peregrinos fazem depois de terem chegado à Catedral de Santiago.
Chegar à Nazaré no dia anterior também nos permitiu desfrutar, ao jantar, da maravilhosa gastronomia da região. Naquela que é uma das terras de pescadores mais famosa de Portugal, comemos a melhor feijoada de marisco de sempre. E isto não pode ser considerado gula: precisávamos de estar bem nutridos para a longa caminhada que nos esperava!
E eis que chegou a madrugada tão esperada. Tínhamos feito alguma pesquisa sobre o Caminho Poente (no site oficial dos Caminhos de Fátima, existe muita informação sobre esta e outras rotas sinalizadas para que os peregrinos e caminhantes possam chegar ao Santuário de Fátima, evitando as estradas de grande circulação automóvel) e sabíamos que nos esperavam sobretudo percursos em terra batida, por vezes em areia, algumas estradas rurais… e muitas subidas.
Só não nos lembrámos de que a primeira subida teríamos de fazê-la ainda antes do início oficial do caminho, para ir desde a vila até ao Sítio da Nazaré, onde se erguem o histórico Santuário de Nossa Senhora da Nazaré e a Ermida da Memória (que segundo a tradição foi mandada construir por D. Fuas Roupinho, em 1182, como agradecimento por Nossa Senhora ter atendido às suas preces, salvando-o de uma queda mortal no mar).
Àquela hora, o ascensor ainda não estava a funcionar, por isso não tivemos outra opção senão gastar as primeiras energias a subir os degraus ziguezagueantes até chegar ao cimo da falésia. Valeu-nos a vista soberba pelo caminho e, melhor ainda, do cimo do promontório. Lá em baixo, vimos chegar os primeiros surfistas. Era uma típica manhã nublada no Oeste, mas adivinhava-se um belo dia de praia.
Vista do Sítio da Nazaré. Foto © Clara Raimundo/7MARGENS
Mas não ficámos com inveja. Retemperadas as forças, agora sim, iniciávamos oficialmente o Caminho Poente. De mochila às costas, só com o essencial. Neste primeiro dia, o objetivo era chegar a Pedreiras, que ficava a 24 quilómetros. Ou seja, fazer quase metade do percurso.
Olhámos em volta e não foi preciso procurar muito para encontrarmos a primeira seta. De outros peregrinos nem sinal, apesar de já estarmos no final de abril, perto da data da peregrinação aniversária de 13 de maio, que ano após ano leva milhares ao Santuário.
Seguimos em direção a Valado dos Frades. O caminho era plano e num instante deixámos o mar lá atrás para nos embrenharmos no Pinhal de Leiria. As indicações lá estavam, sempre que precisávamos: ora presas a uma árvore, ora pintadas numa pedra, ora sob a forma de tabuletas. Bastava seguirmos atentos. E se há coisa que melhora quando fazemos uma peregrinação a pé é a forma como utilizamos os nossos sentidos.
Não faltam setas a indicar o caminho. Foto © Clara Raimundo/7MARGENS
“Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara”, escrevia José Saramago no seu Ensaio sobre a Cegueira. E, quando peregrinamos, é quase impossível não reparar. Enquanto caminhamos, a um ritmo inevitavelmente mais lento do que o da voragem do dia a dia, reparamos na natureza que nos rodeia, na paisagem que se vai transformando, no som da terra sob os nossos passos, em perfeita harmonia com o chilrear das aves, no outro que caminha ao nosso lado, e percebemos: Deus tinha razão quando “viu que tudo era belo”.
Continuámos por mais ou menos dez quilómetros até chegarmos ao Mosteiro de Santa Maria de Coz, onde nasceu, no século XIII, uma comunidade de religiosas cistercienses e cuja igreja dizem ser um “santuário ao barroco”. Infelizmente, estava fechado (encerra aos sábados de manhã, domingos e segundas) pelo que não pudemos visitá-lo. Mas do outro lado da rua chamou-nos a atenção uma casa com um letreiro que dizia “Pão de Ló de Coz – vende-se aqui!”. Entrámos (como disse acima, é muito importante estarmos nutridos… e já tínhamos andado mais de dez quilómetros…), e descobrimos que é dali que vem a receita do nosso pão de ló preferido, o de Alfeizerão, a qual nasceu do labor e dedicação das monjas que habitaram no mosteiro durante séculos.
Mais importante ainda: ali descobrimos também uma pessoa e um projeto verdadeiramente inspiradores. Titus Irura, 45 anos, natural do Quénia, está em Coz há oito anos e, através do projeto Coz ART, projeto de empreendedorismo social promovido pelo Centro de Bem-Estar Social da freguesia, aprendeu a fazer cestas em junco. Ao mesmo tempo que ajuda a revitalizar uma arte centenária e contribui para a sustentabilidade da instituição de apoio a idosos, Titus acalenta o sonho de um dia levar este saber às gentes da sua terra. O seu objetivo é criar no Quénia um projeto semelhante ao que existe em Coz – dado que também na região onde cresceu existia a tradição de fazer cestos com uma matéria-prima semelhante ao junco – e assim proporcionar um modo de subsistência ao seu povo.
Escutá-lo deu-nos alento para prosseguir caminho (o pão de ló talvez também tenha ajudado um pouco). E maioritariamente por entre bosques fizemos o que restava do percurso. Tínhamos reservado a noite numa estalagem, já que na paróquia iam acolher um grupo grande e já não havia espaço para nós, o que obrigou a um pequeno desvio da rota e a um ou dois quilómetros adicionais.
O percurso atravessa maioritariamente bosques e zonas rurais. Foto © Clara Raimundo/7MARGENS
Mas aguardava-nos uma compensação, daquelas que acontecem sempre que se é peregrino: pousámos as mochilas no quarto e o senhor Joaquim, dono da estalagem, vendo que estávamos cansados e nos preparávamos para caminhar até Porto de Mós em busca de um almoço tardio, ofereceu-se para nos levar no seu carro e trazer-nos de volta. Uma generosidade que aceitámos porque os pés e as pernas já começavam a pedir descanso, e o dia seguinte seria muito mais duro.
Adormecemos pouco tempo depois de o sol se pôr, acordámos pouco antes de ele nascer. Outra das coisas boas de peregrinar é este ajustar do nosso ritmo ao da natureza, numa sintonia bem mais equilibrada que a dos horários loucos do nosso dia a dia, em que estamos sempre atrasados.
Mas os primeiros passos deste segundo dia foram difíceis. Apesar de termos feito alongamentos no final da caminhada do dia anterior, tínhamos imensas dores musculares. Valeu-nos o pequeno-almoço preparado pelo senhor Joaquim, que ainda nos fez umas sandes para o caminho, avisando que este não seria “pera doce”. “O Caminho Poente vai pela serra, é sempre a subir e o piso é de pedregulhos… Mas sem dúvida que é muito mais bonito do que irem pela Estrada Nacional”, disse, enquanto nos entregava um pequeno croquis onde tinha rabiscado o melhor percurso para que pudéssemos retomar a rota sem enganos.
Despedimo-nos entre o anseio de regressar rapidamente ao caminho e chegar ao nosso destino e o receio do que nos esperava. “Este é o caminho de Fátima mais bonito, mas também o mais duro”, tínhamos lido algures nas nossas pesquisas. E a verdade é que, de acordo com o guia do Centro Nacional de Cultura – que em articulação com o Santuário de Fátima e várias instituições parceiras desenvolveu os Caminhos de Fátima –, o percurso que iríamos fazer neste segundo dia deveria ser dividido em duas etapas, de 15 quilómetros cada. Mas nós não tínhamos outro dia. Precisávamos de percorrer os 30 quilómetros que faltavam para o Santuário numa etapa apenas.
O que tínhamos lido – e o que nos disse o sr. Joaquim – confirmou-se. A subida pelo Parque Natural das Serras de Aire e Candeeiros, em pleno Maciço Calcário Estremenho, requer alguma preparação física. E custou-nos, sobretudo depois dos 24 quilómetros do dia anterior. Mas o cenário ao longo do percurso é soberbo e as vistas do cume da serra dos Candeeiros, onde sobrevivem vários moinhos antigos, são verdadeiramente incríveis. Igualmente bonito é o troço do percurso que se segue, pela ecopista criada sobre aquela que foi a única linha de caminhos de ferro mineira de alta montanha existente no nosso país.
Cume da serra dos Candeeiros, onde sobrevivem vários moinhos antigos. Foto © Clara Raimundo/7MARGENS
No entanto, a parte mais exigente ainda estava para chegar. Após a aldeia da Barrenta, onde parámos num pequeno café à beira da estrada para beber uma água fresca e nos animámos quando o senhor que nos serviu disse que estávamos tão perto que até já podíamos ouvir dali os sinos do Santuário de Fátima, eis que fomos surpreendidos por uma nova subida. Uma subida mais exigente do que qualquer das anteriores. De tal modo exigente que começou a assemelhar-se a escalada. A explicação não tardámos a descobri-la: tínhamo-nos enganado no caminho. A dada altura, ainda hoje não sabemos explicar porquê, começámos a seguir as indicações de uma prova de trail que tinha havido dias antes, os Trilhos do Pastor, em vez da sinalização do Caminho de Fátima. O que fazer? Continuar era difícil, mas voltar para trás afigurava-se impossível (se já tinha sido complicado subir, descer iria resultar certamente num pé torcido, no mínimo).
Continuámos a subir. O pior é que, entretanto, já nem a sinalização dos Trilhos do Pastor encontrávamos. Estávamos oficialmente perdidos. Valeu-nos o Google Maps: identificámos o café mais próximo e ligámos para lá. O senhor que atendeu, simpático e compreensivo, disse que já no dia anterior tinha acontecido o mesmo a um grupo de peregrinos. Felizmente, conhecia a zona como a palma da sua mão e, com as explicações dele, conseguimos retomar o Caminho Poente.
A subida tornou-se de tal modo exigente que começou a assemelhar-se a escalada. Foto © Clara Raimundo/7MARGENS
Com isto, perdemos uma hora e fizemos pelo menos um par de quilómetros extra, precisamente na altura de maior calor. Estávamos aliviados por ter superado o desafio, mas extremamente cansados. Os pés diziam, ou melhor, gritavam, para pararmos. Aí estava ela, a vontade de desistir. Mas o nosso coração – aberto à revelação de um sentido maior – queria continuar: ainda não estava completamente saciada a sua sede.
Prosseguimos, fomo-nos apoiando mutuamente, conversámos sobre como peregrinar é também isto: aceitar que as dores fazem parte do caminho, tal como na vida. Por vezes, andarmos um pouco (ou totalmente) perdidos. E é também descobrir, nos momentos mais difíceis, uma força que não é nossa. E algo, ou alguém, que nos ajuda a encontrar o rumo.
Peregrinar é também descobrir, nos momentos mais difíceis, uma força que não é nossa. E algo, ou alguém, que nos ajuda a encontrar o rumo. Foto © Clara Raimundo/7MARGENS
Os últimos quilómetros pareceram mais longos que todos os outros. Chegámos a Fátima já passava das cinco da tarde. E quando entrámos no Santuário, as dores, por momentos, desapareceram. O coração exultou de gratidão pela oportunidade de ter caminhado, alegrou-se na superação de ter chegado à meta, encheu-se de esperança e confiança para o regresso a casa. Numa espécie de flashback, olhei para trás e percebi que já não éramos os mesmos que se tinham posto ao caminho, apenas um dia antes, junto ao mar da Nazaré. Já sentia saudades dos momentos que tínhamos vivido – até dos mais difíceis – e encarava com um olhar renovado os desafios que tínhamos pela frente.
As dores regressaram – estiveram sempre lá – e duraram mais de uma semana, mas senti-las passou a ser uma experiência agridoce: no desconforto que geravam, traziam-me à memória aquele caminho tão belo.
E agora?
Agora, depois de ter rezado com os pés – a minha forma preferida de oração –, rezo a cantar, como sugeria Santo Agostinho.
Escolho a oração de Santo Inácio:
Tomai, Senhor, e recebei
toda a minha liberdade,
a minha memória e o meu entendimento,
toda a minha vontade,
e tudo o que eu possuo;
Vós mo destes;
a Vós, o restituo.
Tudo é vosso,
disponde.
Pela Vossa bondade.
Dai-me apenas Senhor.
O Vosso Amor e Graça,
que isso me basta.
Texto redigido por Clara Raimundo/jornal 7Margens, ao abrigo da parceria com a Fátima Missionária.