“Por volta do início do século XX, a imigração foi muito maior do que é agora, mundialmente, porque foi um tempo em que os europeus partiram em grande número para a América, não só para os Estados Unidos, mas também para a Argentina ou para o Brasil. Foi um grande movimento transatlântico. Em termos relativos, foi um movimento muito mais massivo do que o atual. Claro que há mais imigrantes em termos absolutos agora, mas a população mundial é muito maior. Então, em termos de importância em geral, estamos bem aquém dessa antiga vaga de imigração”, afirma Hein de Haas, num primeiro esforço de desfazer algumas ideias feitas.
Para o sociólogo holandês, o que mudou foi o sentido das migrações. Da Europa para o mundo passou-se, em boa medida, do mundo para a Europa: “de uma perspetiva europeia, sobretudo ocidental, é uma mudança completa, porque os países europeus colonizaram o resto do mundo inicialmente. Durante os últimos quatro ou cinco séculos, foram os europeus que se mudaram para outros países, especialmente na América, mas também, depois, países na Ásia e em África. Colonizaram esses países. E os europeus também mudaram muitas pessoas ao redor do mundo, e não estou apenas a falar sobre o tráfico de escravos, mas também sobre o que chamamos de trabalhadores contratados, ou ‘coolies’, levados da Ásia para a América. Eram os europeus que se mudavam e também mudavam pessoas pelo mundo, mas essas pessoas não vieram para a Europa. Isso mudou completamente nos últimos 50 anos, porque a Europa, com a descolonização, teve a primeira onda de um fenómeno que lhe era completamente novo, que foi receber pessoas vindas de outros continentes. Já não eram os europeus que iam para as colónias, eram pessoas das colónias a vir para a Europa. Portugal também testemunhou esse movimento quando descolonizou a África. E numa segunda fase, e isso é o que se vê em Portugal neste momento, até um pouco mais tarde do que noutros países da Europa Ocidental, é esta imigração atual, causada por fatores como a idade cada vez maior da população, também pela educação crescente da população, que faz com que mais e mais trabalhos não sejam feitos pela população local. Então tudo gira fundamentalmente em volta da falta de mão de obra, criada por uma grande mudança demográfica e económica, além, é claro, da questão das independências e da descolonização. Do ponto de vista europeu, e português, é uma mudança completa”.
Haas é autor do livro ‘Como funciona realmente a migração – Um guia factual sobre a questão que mais divide a política’ (Temas e Debates). E veio a Lisboa fazer uma palestra a convite da Fundação Francisco Soares dos Santos, num momento em que Portugal tem mais de um milhão de imigrantes e em que cerca de 20 por cento dos bebés nascidos no país em 2023 têm pais estrangeiros. Sobre os desafios de integração de imigrantes de cultura próxima, como os brasileiros, comparados com os paquistaneses ou nepaleses, o sociólogo explica: “É mais fácil a integração quando se fala a mesma língua e se existem ligações históricas, sem dúvida. Mas, ainda assim, vemos que, mesmo em caso de grandes diferenças culturais, se as condições forem as certas em termos de trabalho para os adultos e de escolas para as crianças, e assim se evitar a segregação, na verdade a integração pode ser muito bem-sucedida. Mas claro que é um grande desafio. Não há motivo para que os governos não recebam bem os novos imigrantes vindos de países não lusófonos ou de países não cristãos, e devem procurar garantir que se possam integrar na sociedade portuguesa. Porque, se os políticos se tornarem hostis em relação aos novos imigrantes, isso não vai fazer com que se vão embora, vai, sim, criar problemas. Se os imigrantes não se sentirem bem-vindos, começam a transformar-se dentro do seu grupo. Foi isso que aconteceu, em parte, com alguns grupos em França, por exemplo, ou na Alemanha, pessoas que eram muito bem-vindas quando o seu trabalho era necessário, mas, quando houve recessão, enfrentaram problemas por causa da pobreza e da segregação. E aconteceu principalmente porque os políticos não foram capazes de aceitar o facto de que esses novos imigrantes também precisavam de ser integrados na sociedade. Se os tratarmos somente como trabalhadores, e não como pessoas com famílias, então colocamo-nos a nós próprios em perigo como sociedade. Por outro lado, como testemunha a história, vimos uma incrível capacidade dos imigrantes para se adaptarem, especialmente quando os filhos crescem, e isso é realmente importante. Temos de garantir que, uma vez que os imigrantes têm filhos, as crianças vão para as escolas juntamente com filhos de portugueses, porque isso fará deles uma parte da própria sociedade. O problema começa com a segregação, pois se as pessoas acabam remetidas para certos bairros, se vão para as escolas apenas com crianças do seu próprio grupo, então não aprenderão a língua e não se sentirão parte da sociedade. Isto é realmente muito importante para Portugal, porque o país está a transformar-se”.
Sobre se há limites ao número de imigrantes que um país pode acolher, Haas, professor de Sociologia na Universidade de Amsterdão e professor de Migração e Desenvolvimento na Universidade de Maastricht, responde que “não há um número mágico, porque algumas sociedades têm sido capazes de lidar realmente com altos níveis de migração, mas noutros países não, e isso depende da vontade política. Os governos têm que assumir a sua responsabilidade, e isso, é claro, é um processo democrático. Mas se um país quer menos imigrantes, é muito importante perceber – e é um dos temas do meu livro – que a imigração não é uma torneira que se abre e fecha quando nos convém. Porque sabemos, graças à investigação, que se há oferta de trabalho os imigrantes encontrarão o seu caminho. Então, se a economia corre bem, e acho que é o que está, por exemplo, a acontecer em Portugal agora, e os jovens não querem fazer certos trabalhos, os imigrantes preenchem esse espaço. Os imigrantes não tiram trabalho, eles preenchem vagas. Isso significa que, se a economia de um país está bem, esse país atrairá muitos imigrantes. E não se pode ter ao mesmo tempo uma economia aberta de mercado bem-sucedida e querer menos imigração. Essas duas coisas não se interligam. Então, se os governos são sérios, isso não passa, para mim, como investigador, por dizer quantos imigrantes o país deveria aceitar, mas, sim, se se quer mesmo menos imigração, teria que mudar a sua política económica, a sua política de mercado de trabalho, torná-los menos liberais, e assim poderia controlar melhor o que está a acontecer. Mas acho que o que temos, e certamente também em Portugal, é uma política muito mais de ‘laissez-faire’ em termos de mercado de trabalho. E isso é uma receita para uma imigração alta. Não estou a dizer se é bom ou mau, mas, se os governos realmente querem menos imigração, têm que mudar as suas políticas de mercado de trabalho”.
Quanto ao debate sobre se as fronteiras devem ser abertas, Haas é esclarecedor. “As fronteiras abertas são um slogan, tanto quanto o são as fronteiras fechadas. Porque as fronteiras fechadas são uma miragem, uma fantasia, mas também as fronteiras totalmente abertas não são exequíveis. É tudo uma utopia. Então, não acho que seja uma maneira muito consentânea de falar sobre isto. Mas penso que é útil pensar na história e olhar, por exemplo, para a imigração dentro dos países ou dentro da União Europeia. A maioria das pessoas vão e voltam, e isso é uma forma natural de migrar. Então, quando os governos começam a limitar a imigração, sem realmente entender as suas causas – e a economia é muito importante aqui, pois se a economia atrai muitos imigrantes, se a oferta de trabalho ainda está lá e apenas se coloca uma fronteira, o que você faz é fechar uma espécie de porta giratória –, fecham as fronteiras mas a imigração aumenta. E esse é o paradoxo que os políticos acham muito difícil de entender. É que, particularmente quando já há redes e as pessoas já têm conexões, elas vão encontrar uma forma. Mas, antes de mais, devo dizer que acho que é completamente irrealista pensar que podemos colocar um muro à volta da Europa. A Europa não é a Austrália, é uma situação geopolítica muito diferente. Mas mesmo um muro perfeito não iria impedir a imigração, e Portugal é um ótimo exemplo. Muitos brasileiros sem todos os papéis necessários entram como turistas e depois ficam mais tempo. Nenhum governo pode impedir isso, basicamente, se defende uma economia aberta. Então, uma política de imigração para ter sucesso precisa de ser alinhada com as políticas económicas. Se se fecha apenas a fronteira, e não muda nada sobre as causas da imigração, geralmente os efeitos são contraproducentes”, diz o sociólogo, oriundo desses Países Baixos em que um partido anti-imigração venceu as últimas eleições e vai governar à frente de uma coligação com outras três forças políticas.
Texto: Leonídio Paulo Ferreira, jornalista do DN