As intenções são boas, mas por si só não chegam. O alerta é de André Costa Jorge, diretor do Serviço Jesuíta aos Refugiados (JRS) e coordenador da Plataforma de Apoio aos Refugiados (PAR), que reconhece ao jornal digital 7Margens ter ficado “surpreendido pela positiva” com as medidas do novo plano para as migrações – apresentadas segunda-feira, 3 de junho – mas faz questão de assinalar que, para que o modelo funcione, há muito a fazer. É preciso, nomeadamente, desburocratizar processos, contratar mais recursos humanos e dar-lhes a devida formação. Uma opinião partilhada por Ana Mansoa, diretora-executiva do Centro Padre Alves Correia (Cepac), e Eugénia Quaresma, diretora da Obra Católica Portuguesa de Migrações (OCPM).
“A minha impressão geral deste modelo é que tem mais aspetos positivos do que menos positivos, desde logo por haver uma visão assumida pelo Governo em relação às migrações nas suas diferentes dimensões”, afirma André Costa Jorge, e exemplifica: “A questão da detenção, que é uma dimensão muitas vezes longínqua do comum dos cidadãos e de que poucas pessoas falam porque não conhecem – embora tenha estado na origem da extinção do SEF – foi abordada neste plano, e reconhecendo a importância da presença da sociedade civil nestes espaços, que é algo que nós já vínhamos pedindo há muitos anos”.
O responsável do JRS sublinha que propostas como esta “refletem a auscultação que existiu da parte do Governo junto de um vasto conjunto de organizações que trabalham com os migrantes”, e dá ainda outro exemplo: “A medida de atribuir autorizações de residência para investimento solidário em equipamentos e infraestruturas de acolhimento, projetos de integração e apoio a imigrantes em situação de vulnerabilidade foi uma proposta nossa ao Governo.” A integração deste tipo de medidas no novo modelo é, para André Costa Jorge, “sinal de que o Governo ouve quem está no terreno e implementa as boas propostas, ou pelo menos tenta” fazê-lo.
Também Ana Mansoa faz questão de “felicitar o Governo pela iniciativa de auscultar vários intervenientes para a construção deste plano de ação e pela iniciativa de assumir esta área como uma emergência nacional”.
Em declarações ao 7Margens, a responsável pelo Cepac – instituição que, tal como o JRS, foi ouvida pelo atual Governo – reconhece como particularmente positivas “a criação da estrutura de missão para resolver as pendências nos processos de regularização” e a “preocupação em melhorar o processo de reconhecimento de qualificações e competências e o reconhecimento, valorização e incentivo do papel dos municípios e da sociedade civil”. Quanto à redefinição e autonomização do Conselho para as Migrações e Asilo enquanto órgão consultivo do Governo, Ana Mansoa confessa-se “expectante”.
Eugénia Quaresma também está na expectativa. “Nós [Obra Católica para as Migrações] não fomos previamente ouvidos pelo Governo, acredito que por desconhecimento em relação à nossa instituição, mas considero muito positivo que tenha existido este diálogo com outras organizações, ministérios e partidos políticos, e gostaríamos muito de estar representados nesse Conselho Consultivo”, afirma ao 7Margens a responsável da instituição, que depende diretamente da Conferência Episcopal Portuguesa.
“É muito positivo que queiram contar connosco”, prossegue, “mas o que faz a campainha de alarme soar é que nos chamem só nas situações de emergência. Estamos no terreno e queremos fazer parte da solução, queremos contribuir para que este acolhimento e integração se façam com integridade”, sublinha.
Extinção da manifestação de interesse: sim ou não?
Para Eugénia Quaresma, é importante que “os serviços da rede consular sejam dotados de meios, quer recursos humanos quer técnicos, para que os processos possam ser céleres”. Foto © Ricardo Perna /Família Cristã
Quanto às restantes medidas apresentadas pelo Governo, Eugénia Quaresma tem esperança de que contribuam para que “o sistema passe a funcionar melhor”. “A extinção do regime da manifestação de interesse [uma das decisões que tem gerado mais polémica] a mim não me chocou, porque não estava a funcionar bem… houve falhas no uso deste instrumento”, reconhece.
O importante, agora, é que “os serviços da rede consular sejam dotados de meios, quer recursos humanos quer técnicos, para que os processos possam ser céleres. Porque é na falta de meios que as redes criminosas vão atuar”, alerta a responsável pela OCPM.
Eugénia Quaresma partilha, ainda, “o receio de que as pessoas que não consigam regularizar a sua situação caiam em situação de destituição de direitos, tenham medo de recorrer aos serviços de saúde, ou sejam alvo de violência e não queiram denunciar…”.
Nesse sentido, sublinha que existe uma “enorme necessidade de formação nos serviços públicos no que diz respeito aos direitos humanos e ao diálogo intercultural, para que sejam capazes de melhorar o acompanhamento prestado”. Lembrando que a incapacidade para prestar esse acompanhamento “era a maior queixa que existia em relação à AIMA [Agência para a Integração, Migrações e Asilo]”, Eugénia Quaresma defende que é essencial que esta “seja mais ágil e que as pessoas sintam que têm uma instituição oficial onde podem dirigir-se e com capacidade de resposta, sem terem necessidade de intermediários”.
Na mesma linha, André Costa Jorge considera que “a manifestação de interesse era a evidência de que o sistema formal, que deveria funcionar, não funcionava”. A sua extinção “pode parecer um passo atrás, mas às vezes é preciso dar um passo atrás para dar dois à frente bem dados… Os pessimistas dirão que não resolve nada e vai criar barreiras, eu diria que é um passo necessário para criar disciplina no sistema, em que o Estado se compromete e obriga a por o sistema em funcionamento”, diz ao 7Margens.
Já Ana Mansoa não está tão segura. “Sobre a extinção do procedimento de manifestações de interesse, é uma porta que se fecha à regularização por via do trabalho de quem chegou a partir do dia 4 de junho de 2024, e continuará a chegar”, assinala. “Questionamo-nos sobre os casos de pessoas que vivem já em Portugal há algum tempo mas que, por se encontrarem em situação de desemprego de longa data, ou não terem vínculo laboral formal, se encontram em situação de particular incerteza e vulnerabilidade”, acrescenta. E relativamente ao terceiro ponto da primeira medida apresentada, que fala em eventuais situações extraordinárias de regularização, “existe um grande ponto de interrogação sobre que situações serão essas, deixando claro que a extinção das manifestações de interesse colocará muitas pessoas numa situação de limbo”, alerta.
“Quanto ao reforço da fiscalização de situações de imigração irregular, em particular, questionamo-nos sobre os procedimentos a ser definidos e a sua aplicação, temendo que se possa tornar numa perseguição e punição das pessoas imigrantes, sobretudo das que se encontram em situações mais frágeis e complexas”, diz ainda.
Contratar, formar… e promover o encontro
Ana Mansoa sublinha “a importância do diálogo e colaboração com as entidades da sociedade civil e das próprias pessoas imigrantes no processo de criação e implementação de políticas públicas mais justas”. Foto © Cepac.
Uma coisa é certa, defende André Costa Jorge: “o Estado tem de ser muito mais eficiente e eficaz do que tem sido desde 2009, pois desde aí temos vindo a assistir à degradação da qualidade dos serviços. É aí que reside a dificuldade e que deve ser feito o maior esforço”, apela, até porque problemas existentes são muitos e “resultam da inação de vários governos de diferentes cores”.
“Ainda bem, por um lado, que não se caiu no erro de acabar com a AIMA ou de ressuscitar o SEF. Aquilo que foi bem decidido no governo anterior é de manter, mas agora é necessário investimento para que haja efetivamente capacidade de resposta”, assinala, questionando: “Qual a estratégia para contratação e formação de recursos humanos? Falou-se num sistema de incentivo para reter recursos, mas é preciso ir mais além”, defende o coordenador da PAR. “Tem de haver mais recursos e investimento do Estado para que este novo plano funcione. É preciso contratar, formar, articular com sociedade civil…”.
Também Ana Mansoa lembra que “há muito tempo que já estava identificada a necessidade de um maior investimento nos recursos humanos do SEF [Serviço de Estrangeiros e Fronteiras], e agora da AIMA, e da sua devida formação”, e sublinha “a importância do diálogo e colaboração com as entidades da sociedade civil e das próprias pessoas imigrantes no processo de criação e implementação de políticas públicas mais justas, dignas e que contribuam para a paz e coesão social”.
Eugénia Quaresma concorda e lembra que a Igreja Católica, em particular, “pode e deve ter um papel mais ativo na promoção do encontro, seja por iniciativa própria, seja envolvendo-se em iniciativas dos municípios”. Para a responsável pela OCPM, “esta questão do encontro é mesmo determinante para desfazer alguns medos na sociedade e nas pequenas comunidades, que não estavam habituadas a acolher migrantes”. E é essencial o diálogo inter-religioso, “que não pode ficar só pelos líderes, mas tem de acontecer nas bases das próprias comunidades”.
Texto redigido por Clara Raimundo/jornal 7Margens, ao abrigo da parceria com a Fátima Missionária