O ex-primeiro ministro italiano Matteo Renzi referiu-se ao “tempo dramático” que vivemos e sublinhou a importância da cultura porque sem ela não há futuro; o patriarca ortodoxo Bartolomeu afirmou que a crise ambiental é ética e espiritual; o imã da Grande Mesquita de Meca destacou que o islão vê a diversidade como uma riqueza; o grande mufti muçulmano do Egipto sublinhou o “imperativo” de os líderes religiosos se demarcarem do uso violento da religião; e a activista dos Direitos Humanos Graça Machel salientou o papel das mulheres na mediação de conflitos. Lisboa foi, em 15-16 de Maio, a sede do Fórum Global de diálogo organizado pelo Kaiciid, Centro de Diálogo Inter-Cultural, que juntou líderes políticos e religiosos, bem como activistas do diálogo inter–religioso e dos direitos humanos.
“Todos estamos bem conscientes das ligações íntimas e inseparáveis da crise ecológica com os problemas globais da pobreza, da migração e dos conflitos”, afirmou o Patriarca ortodoxo de Constantinopla, Bartolomeu, na sessão de abertura, perante os cerca de 100 participantes da iniciativa. O líder espiritual dos ortodoxos perguntou: “Como é que nós, enquanto líderes religiosos, podemos não procurar o bem-estar dos habitantes do mundo? Como podemos não trazer à luz do dia a exploração criada por indústrias e corporações, muitas vezes com a permissão ou tolerância de políticos e estados?”
Bartolomeu é conhecido como o “patriarca verde”, pela sua sensibilidade e atenção a estes temas, traduzida por exemplo na realização dos simpósios “Religião, Ciência, Ambiente”, com teólogos, cientistas e ambientalistas, em lugares do mundo mais ameaçados como os rios Danúbio e Mississípi, o Ártico e a Amazónia.
Ao longo das últimas décadas, o patriarca tem “procurado aumentar a consciencialização” sobre matérias como os direitos humanos e a questão da crise climática. Esta, afirmou, “não é um desafio marginal ou periférico no nosso mundo”. Antes “tem raízes espirituais sinceras e profundas que derivam da forma como entendemos o dom da criação como um dom divino e uma responsabilidade divina”. Cuidar da criação, acrescentou, “é antes de mais uma vocação e uma obrigação sagrada e espiritual”.
Por estas razões, defende, “a resposta à crise ecológica, pelo menos com base nos princípios da tradição cristã, exige uma mudança radical de comportamento em relação à criação e um cepticismo como antídoto para os consumidores”. Para o patriarca é clara a ligação: “O endeusamento das necessidades e a atitude aquisitiva pressupõem a nossa maior responsabilidade por transmitir um ambiente natural valioso às gerações futuras”.
Mulheres, as que têm a maior dor
“Estamos a abusar e a explorar a terra e os seus recursos porque não consideramos este planeta como sagrado e, em vez disso, infelizmente, percebemos e tratamos a terra como um objecto dessacralizado”, afirmou Bartolomeu, para declarar, sobre as lideranças religiosas: “Não há qualquer razão ou desculpa para a nossa indiferença ou inacção”.
Para Bartolomeu está em causa também pensar no que se passou com a pandemia: aprendemos que somos vulneráveis, que o ambiente é frágil e não podemos controlar tudo. “As formas como utilizamos o dinheiro e organizamos as nossas sociedades não beneficiaram toda a gente. Encontramo-nos fracos e ansiosos, submersos numa série de crises, por exemplo, na saúde, na alimentação, na economia e na sociedade, todas elas profunda e inseparavelmente interligadas”.
Um caminho que “implica inevitavelmente fazer mudanças, por vezes radicais e até difíceis”, mas que “é o único caminho para a colaboração e a inclusão”. Por isso, as religiões têm de “aumentar a consciencialização sobre a forma como utilizamos os nossos recursos” e de “descobrir novas formas de trabalhar em conjunto para derrubar as barreiras entre fés, culturas e povos”.
De outro ponto de partida falou Graça Machel, “lutadora pela paz e a liberdade e avó africana que quer deixar um mundo de paz aos netos e às gerações vindouras”. A viúva de Samora Machel (e, mais tarde, também de Nelson Mandela) defendeu a participação das mulheres em processos de pacificação, resolução de conflitos e negociações de paz.
“Com as suas capacidades enquanto especialistas, líderes da sociedade civil, guardadoras da religião, académicas, advogadas, defensoras dos direitos humanos, mães e irmãs”, afirmou, as mulheres deveriam participar obrigatoriamente em processos de resolução de conflitos como os da Libéria, Burundi ou Quénia, em que participou. São as mulheres, disse, que têm a maior dor e “que carregam o maior peso do sofrimento e as feridas mais dolorosas das vítimas dos conflitos”.
“O mundo está a mudar muito rapidamente” e esta é uma “era de conflitos cada vez maiores”, insistiu o secretário-geral do Kaiciid, o diplomata saudita Zuhair Alharti, na sua saudação inicial. “Os desafios mundiais exigem uma acção colectiva” e este fórum pretende ser “uma viagem de diálogo e cooperação”, fundada nos Direitos Humanos e lançando as bases de processos que permitam concretizar esses objectivos. E que exige, acrescentou, o “combate a todas as formas de intolerância”.
O imã da Grande Mesquita de Meca, Salih bin Abdullah al-Humaid, insistiu no valor da ética como fundamental nos processos para a construção da paz e na ideia da compaixão como uma das mais importantes no islão. “Nós, os muçulmanos, confirmamos que o islão é uma fé que se baseia no princípio da igualdade e da justiça entre as pessoas. Apela à tolerância, à moderação e à compreensão entre os povos e os estados. O islão é a fé da compaixão, Deus é o mais compassivo”, afirmou.
Anti-patriótico é o discurso de ódio
Respondendo indirectamente a várias críticas feitas a determinadas perspectivas do islão, al-Humaid afirmou que o reforço da “cultura do diálogo e os seus princípios é um passo essencial para nos imunizarmos contra o extremismo e o ódio” e que o islão “também afirma que as diferenças entre os seres humanos são uma dádiva de Deus” e que o Alcorão afirma: “Vós fostes criados homem e mulher em tribos, para que se possam congregar e conhecer entre todos”. E sublinhou que “o papel dos líderes religiosos é essencial na construção da paz entre as sociedades”.
O rabi-chefe da Polónia, Michael Schudrich, referiu-se à ideia da diversidade, contando que, aos sete anos, aprendeu do pai e da mãe que, quando o Papa João XXIII morreu, morrera “um grande homem”. “Percebi que nem só os judeus são grandes, também há grandeza para descobrir nos outros”. “Somos todos filhos de Deus, Deus criou-nos a todos”, afirmou Schudrich, recusando-se no entanto a dizer se rejeita a operação militar de Israel em Gaza. “Não sou militarista”, disse, defendendo no entanto o dever de Israel proteger os seus cidadãos.
Matteo Renzi, primeiro-ministro italiano entre 2014 e 2016, começou por fazer várias perguntas: “No tempo do mundo, há lugar para o diálogo? No tempo da inteligência artificial, há lugar para a religião? No tempo das redes sociais, há lugar para a cultura? Claro que sim. Não só há lugar, como precisamos de lugares de oportunidades de diálogo sobre esses pontos, porque esse é o futuro”. Que passa, acrescentou Renzi, pela cultura, que “não deveria ser a última” opção política. A propósito, referiu a sua decisão, enquanto presidente da câmara de Florença, de destinar as mesmas verbas para a cultura e a segurança: “Por cada euro para a segurança, havia um euro para a cultura”. Uma lógica, defendeu, semelhante à que se vivera no Renascimento, quando a cidade estava em guerra e, apesar disso, o escultor e ourives Lorenzo Ghiberti e o seu filho Vittore esculpiram a Porta do Paraíso no Baptistério de Florença, “uma das obras-primas do Renascimento”.
Augusto Santos Silva, ex-presidente da Assembleia da República, falou a partir de um ponto de vista laico e secular sobre a “importância das religiões”. Referiu que “as nossas diferenças enriquecem o mundo”, condenou a “justificação do discurso de ódio” como “uma das coisas mais anti-patrióticas, porque a pátria portuguesa não é isso, é uma pátria habituada há séculos aos que saem e aos que entram”, de proveniência “variada: quem quer dividir-nos, quem quer que nos odiemos uns aos outros, quem quer que nós sejamos intolerantes uns com os outros, esse está a pôr em perigo o essencial da pátria portuguesa”.
Texto: António Marujo, Jornalista do setemargens.com.
O autor escreve segundo a antiga ortografia