Quando olhamos para o Índice Global de Paz, a Islândia está na primeira posição, desde o início, em 2008. O Iémen está agora no fundo da tabela, em vez do Afeganistão. É óbvio que estes dois países nos extremos são completamente diferentes. Uma ilha no Atlântico Norte e um país do Médio Oriente. O que realmente faz a diferença abismal? É mais do que a geografia?
Bem, há muitas coisas, muitas coisas que fazem a diferença. A Islândia tem uma longa história de paz. A última vez que a Islândia teve o que se chama de guerra foi há quase mil anos. Quando se olha para a Islândia, é um meio ambiente realmente hostil, um dos meios ambientes mais severos do mundo. E por causa disso, todos os que lá vivem tiveram que se unir. E até recentemente, talvez há 40 anos, era ainda bastante aceitável na Islândia entrar na casa de alguém que não estivesse lá, porque tudo estava aberto. Entrava-se, colocava-se uma chaleira no fogo para aquecer água e preparava-se uma chávena de chá. Como o clima é tão severo, com tempestades que chegam de repente, as pessoas procuram abrigo muito, muito rapidamente. E podia ser na casa de outra pessoa. E por a ilha ser tão escassamente povoada, nunca houve realmente um rei, nem um exército que impusesse a lei.
Então os islandeses reuniam-se no centro da ilha uma vez por ano, no meio do verão, para discutir quais seriam as leis que seriam implementadas. O lugar onde eles se reuniam tradicionalmente é onde duas placas tectónicas se encontram e onde há a maior falha entre as placas tectónicas. Portanto, por a ilha ser tão escassamente povoada e sem exército, cabia às comunidades fazer o seu próprio policiamento, um policiamento comunitário. Da mesma forma, muitas vezes, os homens da Islândia ficavam no mar durante longos períodos de tempo, às vezes um ano, às vezes dois. E quando voltavam para casa, descobriam que as suas mulheres tinham tido filhos com outros homens. Então, novamente, tiveram que levar em conta esta realidade, o que criou muita tolerância e harmonia dentro da ilha. Todos estes diferentes fatores, e outros mais, juntaram-se para criar o país. Se formos ao Iémen, por exemplo, quando vemos o que o Iémen sofre, o que sofre a maioria dos países assolados por conflitos, muito tem a ver com ter uma ecologia muito pobre. Aliás, a degradação ecológica no Iémen está entre as piores do mundo. E muitas vezes descobrimos que o conflito e a degradação ecológica andam juntos. O que acontece é que quando se tem um meio ambiente onde é difícil produzir alimentos suficientes para sustentar a população, é provável que haja muito mais conflitos ligados à disputa dos recursos. E da mesma forma, quanto mais conflito existir, maior será a probabilidade de se degradar os recursos. Então, da próxima vez que ocorrer algum tipo de choque, como uma seca, por exemplo, maior será a probabilidade de o sistema entrar em colapso. A outra coisa que afeta negativamente este tipo de países tem que ver com o governo, ou com a ausência dele. Normalmente, não existe um governo que realmente tenha controlo sobre o território. Portanto, podemos ter um governo apenas nominal, como o que temos hoje no Iémen, mas temos uma grande parte do território controlado por forças rebeldes, como os Houthis, neste caso.
O índice divulgado agora destaca também o número recorde de conflitos no mundo. É o número mais alto desde o fim da Segunda Guerra Mundial. Obviamente, toda a gente sabe da guerra na Ucrânia, da guerra em Gaza, mas há outros conflitos que passam despercebidos nos meios de comunicação, como os no Sudão, no Sudão do Sul, no Congo ou na Etiópia. Em 2023, a maior parte das mortes foram na Ucrânia e em Gaza, mas recordo que em 2022 o conflito mais mortífero até era no Tigré, uma região da Etiópia. Como explicar tantos conflitos no mundo hoje, mais de 50?
Atualmente existem 56 conflitos no mundo. É o máximo desde o fim da Segunda Guerra Mundial. Da mesma forma, temos agora 92 países que lutam num conflito para além das suas fronteiras. É o máximo desde a criação do Índice Global de Paz em 2008. O que temos visto nos últimos 50 anos é uma queda substancial no finalizar dos conflitos. Explico: por exemplo, voltemos à década de 1970, 49 por cento dos conflitos terminaram porque ou os rebeldes venceram ou o governo venceu, houve uma vitória absoluta de um lado. Isso caiu para nove por cento na década de 2010. Da mesma forma, se voltarmos à década de 1970 e olharmos para os acordos de paz, 23 por cento dos conflitos terminaram com acordos de paz. Na década de 2010, isso caiu para quatro por cento. Então o que estamos a ver é essa enorme mudança para pior na capacidade de resolver conflitos. E foi isso que causou o grande aumento dos conflitos existentes. Estamos a ter o que já foi chamado de guerras eternas. Então, estes conflitos, que poderíamos chamar de conflitos menores, e para nós isso representa algo entre 25 e 1000 mortes por ano, estão a tornar-se o que chamamos de conflitos esquecidos ou guerras eternas. Agora, há uma necessidade urgente – e isto é algo que eu pressionaria a comunidade internacional a levar a sério – de ser capaz de resolver o maior número possível destes conflitos menores. Haverá alguns que serão muito mais fáceis de resolver do que outros, mas se não se fizer, esses conflitos menores terão o potencial de se transformar num grande conflito. Por exemplo, se voltarmos a 2019, as guerras na Etiópia, em Gaza e na Ucrânia eram nessa altura consideradas conflitos menores.
Quando olhamos para estes dois grandes conflitos, Gaza e a Ucrânia, está otimista quanto à perspetiva
de paz num e noutro caso?
Penso que a guerra ucraniana provavelmente terminará num conflito congelado ou em escaramuças ligeiras que durarão algum tempo. É improvável que a Ucrânia aceite um acordo em que tenha de ceder território, mas, por outro lado, é pouco provável que a Rússia desista do território que já está ocupado. Então, talvez a comunidade internacional possa reuni-las para chegar a um acordo. O conflito de Gaza é muito mais difícil e problemático. A principal preocupação para a comunidade internacional é que o conflito não se espalhe e se torne num conflito regional, porque isso teria um impacto grave na economia global. Assim, por exemplo, se olharmos para o Egito, Israel, Jordânia, Líbano e Irão, o valor económico total desses cinco países é de cerca de três biliões de dólares. Se olharmos para a guerra civil na Síria, o PIB caiu 87 por cento ao longo de uma década. Se olharmos para o conflito ucraniano, no primeiro ano o PIB caiu 29 por cento. Então, vamos assumir que há uma queda de cerca de 30 por cento na economia se o conflito em Gaza se tornar regional. Será um bilião de dólares. O fluxo e os efeitos no resto do mundo são provavelmente grandes o suficiente para empurrar a economia global para a recessão. Portanto, o preço económico disto, para além dos sofrimentos humanos, que é trágico, também é grave. Da mesma forma, haveria um fluxo de refugiados. E estes refugiados, com toda a probabilidade, deslocar-se-iam em direção à Europa. E haveria um risco acrescido de o terrorismo também fluir para outras partes do mundo. Portanto, penso que o que é realmente importante é que a comunidade internacional mantenha o conflito onde está. A chave para compreender o conflito é o que acontece quando a guerra terminar. E, nesta fase, a comunidade internacional não é clara sobre isso.
Estamos a falar de guerra. Mas o que o seu instituto criou foi o Índice Global de Paz. Pode explicar a ideia de paz positiva que é tão importante na construção do índice? Como um país poderia melhorar a sua posição?
Existem certos conceitos que criam uma sociedade pacífica. É muito parecido com o corpo humano. Existem certas coisas que sabemos que nos mantêm saudáveis, como uma dieta adequada, bom exercício, uma disposição mental correta. Se tivermos essas coisas, é menos provável que adoeçamos. Da mesma forma, alguns tipos de características também são verdadeiras para a sociedade. Nós rotulamos isso de paz positiva. Portanto, são as atitudes, instituições e estruturas que criam e sustentam sociedades pacíficas. E estas sociedades são muito mais resilientes. Mas o que é vital é que as mesmas qualidades que criam sociedades pacíficas também criam uma série de outras coisas que consideramos importantes, como um rendimento per capita mais elevado, um melhor desempenho na ecologia, um melhor desempenho nas medidas de bem-estar e felicidade, e melhores resultados para o desenvolvimento. Portanto, em muitos aspetos, a paz positiva descreverá um ambiente ideal sob o qual o potencial humano pode florescer. Portanto, este conceito de paz positiva pode ser aplicado olhando para a saúde geral da sociedade. Se quisermos, é como um termómetro que verifica a saúde de um país.
Texto: Leonídio Paulo Ferreira, jornalista do DN