Sorino sentado sobre a rede, na companhia de quatro Missionários da Consolata, no interior de uma maloca | Foto: DR

Felicita Muthoni Nyaga, missionária da Consolata queniana e enfermeira em Catrimani, no Brasil, trabalhava num posto de saúde local quando, na manhã de 7 de fevereiro de 1996, ocorreu um trágico acidente. O seu testemunho mostra como tudo se desenrolou naquele dia e nos seguintes. “Por volta das 09h00, o cunhado do Sorino, um Yanomami, veio até mim. Pedia uma pistola: respondi que, nós, missionários, não tínhamos armas. Quando o homem fugiu, sem fôlego, fiquei desconfiada e corri atrás dele. A cozinheira viu-me e foi também”. Quando a irmã Felicita chegou à maloca, nome dado à habitação dos indígenas, apercebeu-se da gravidade da situação. “Vi uma poça de sangue. Depois notei que havia alguém a respirar. Tinha de fazer alguma coisa: pedi água e comecei a lavar aquele homem. Percebi imediatamente que o seu couro cabeludo estava quase completamente descoberto”.

O homem que jazia no seu sangue era Sorino Yanomami. Mais tarde, ele disse que foi atacado pelas costas por uma onça, enquanto caçava pássaros a cerca de dois quilómetros de casa. O animal tinha-lhe mordido a cabeça, abrindo o seu crânio. Sorino, porém, conseguiu reagir, mantendo-o afastado com uma flecha, e depois conseguiu voltar sozinho para a maloca, caindo inanimado na entrada.

O relato da religiosa mostra as seguintes decisões: “Colocámos Sorino numa rede e levámo-lo para o posto de saúde da missão, onde lhe injetei plasma. Enquanto isso, falei via rádio, a única ligação que tínhamos com a capital, com a irmã Rosa Aurea Longo, em Boa Vista, e perguntei se poderia enviar um avião com urgência. A irmã Rosa disse que todos os aviões estavam no ar, porque naquela manhã havia uma série de emergências. Tivemos de esperar”.

A notícia do ataque espalhou-se e, por volta do meio-dia, cerca de 15 xamãs (líderes espirituais) e cerca de 200 Yanomamis de todas as malocas circundantes chegaram à missão. Eles entenderam que Sorino estava prestes a morrer e pretendiam realizar o ritual xamânico, que acompanha o espírito do falecido ao mundo dos espíritos dos ancestrais. Os homens estavam também armados para caçar a onça.

Felicita Nyaga, enfermeira e Missionária da Consolata queniana, socorreu Sorino nos primeiros momentos após o ataque de uma onça | Foto: DR

A irmã Felicita dirigiu-se àquelas pessoas. “Fui ter com todas aquelas pessoas e disse-lhes: ‘O Sorino ainda está vivo. Vamos esperar pelo avião e mandá-lo para o hospital de Boa Vista’. Eles responderam – ‘Não, ele não pode ir para a cidade. É muito grave. Vimos o miolo dele pendurado na cabeça e a onça comeu uma parte. Uma pessoa sem um pedaço do cérebro não pode viver’. Eu disse-lhes: ‘Isso é verdade, mas Sorino ainda está vivo e devemos tentar salvá-lo’. Eles insistiram: ‘Não, porque os espíritos vêm buscá-lo. Ele deve dizer ‘Sim’ para sair do corpo e ir com eles. Isso não pode acontecer fora da floresta’. Eu tinha chegado recentemente a Roraima e não entendia esse conceito. Também pedi para me traduzirem, porque ainda não falava bem a língua deles. No meio de toda esta confusão, os homens apontaram-me dezenas de flechas. Fiquei com medo e comecei a chorar. Aí, as mulheres que estavam com eles cercaram-me para me proteger: ‘Felicita, não chore, não tenha medo. Eles não vão atirar as flechas contra você. Eles estão muito zangados com a onça, e gritam porque vocês não se entendem’”.

A irmã Felicita conseguiu escapar daquela situação com a desculpa de ir ver o ferido à enfermaria, que aparentava melhorias. “Sorino recuperou um pouco de energia graças à transfusão. Ele pegou na minha mão e tentou apertar, mas não conseguiu. Encostei o ouvido à sua boca e ele sussurrou-me: ‘Felicita, você agora é a minha mãe. Dizem que tenho que ir com os espíritos, mas não quero. Faça alguma coisa, porque quero viver’. Então vi-me entre aquele que queria viver e os outros que queriam mandá-lo aos espíritos”.

Por volta das 14h00, o avião chegou. Os Yanomami tinham-se dispersado. Apenas Kalera, um amigo próximo do homem ferido, permaneceu e perguntou se poderia acompanhá-lo até Boa Vista. A irmã Felicita e a cozinheira levaram-no para o avião e os dois partiram. A missionária enfermeira foi depois ao encontro da família do doente: “Procurei então a mulher do Sorino, que tinha ido avisar alguns familiares numa maloca a três quilómetros dali. Quando ela chegou disse-lhe: ‘Helena, o seu marido está num estado muito grave. Mandei-o para o hospital em Boa Vista’. A mãe de Sorino também estava lá e ambas começaram a chorar”.

Quando a irmã Felicita voltou para a missão, enfrentou uma situação que não esperava. “O grupo Yanomami estava lá novamente. Eles perguntaram-me: ‘Felicita onde está Sorino?’ Eu disse: ‘Mandei-o para Boa Vista’. Eles disseram: ‘Porquê? Você não escuta os xamãs? Sorino não pode morrer longe da floresta, porque assim o seu espírito nunca encontrará um lar. Ele só encontra a única porta para a vida após a morte se estiver na companhia de outros espíritos, mas fora da floresta ninguém pode acompanhá-lo. Então ele voltará para cá, não encontrará a porta e ficará a vaguear para sempre. Ele ficará com raiva porque nunca conseguirá descansar e causar-nos-á problemas’”.

A religiosa afligiu-se: “Naquele momento percebi que tinha cometido uma violência grave contra a cultura deles. Eu tinha invadido uma esfera na qual não deveria ter entrado. Quando a vida está em jogo, são eles que devem agir e não pessoas de fora. Os xamãs disseram-me: ‘Entre na sua casa. Não podemos matar-te agora porque Sorino não está morto, mas deixamos as flechas aqui’. Colocaram várias flechas em frente à casa e disseram – ‘Se ele morrer, vamos matar-te com estas mesmas flechas’. Eu fiquei debaixo daquela ameaça; entretanto, alguns jovens permaneceram para garantir que eu não saía de casa”.

A irmã Felicita mantinha o contacto diário com Boa Vista, via rádio, para receber notícias sobre Sorino. A religiosa tinha explicado aos meios de socorro o estado em que estava Sorino, dando também conta do risco em que se encontrava a sua vida. Os médicos já estavam prontos para receber Sorino, e assim que ele chegou operaram-no durante cerca de quatro horas. Depois, em coma, ele foi colocado numa unidade de cuidados intensivos. As religiosas de Boa Vista decidiram acompanhar de perto o internamento. A irmã Maria da Silva Ferreira, portuguesa, ficava com ele durante o dia, e a irmã Lisadelle Mantoet, italiana, cuidava de Sorino à noite.

As ameaças a Felicita tinham-na deixado com um grande receio: “Estava com muito medo. Na capela da casa olhei para o quadro de Allamano e disse-lhe: ‘Você sabia que passaríamos por estas dificuldades? Onde você está agora?’ Quando fiz esta pergunta, senti como se um cobertor me envolvesse. Tive febre alta, devido ao stress e ao choque. Eu disse: ‘Escuta Jesus, por intercessão de José Allamano, quero pedir-te apenas uma coisa: Sorino foi para Boa Vista e está num estado muito grave. Se puderem tratá-lo lá, peço que ele recupere completamente e volte a ser como era antes. Se ele voltar com deficiências, como paralisia, não poderá viver na floresta como caçador e pescador. Se ele não se curar, é melhor que morra. Se ele tiver que morrer, peço também a graça de carregar a flecha que me atingirá’. Também me questionei: ‘Este é realmente o nosso lugar de missão? Só a recuperação completa de Sorino nos pode dar uma resposta’. Tinha terminado a minha oração, que repetiria todos os dias. Acendi uma vela. Senti que tinha feito tudo”.

O acidente aconteceu a 7 de fevereiro, data de início da novena de José Allamano, cuja festa é dia 16. Em Boa Vista, a novena foi dedicada à cura do ferido. Além disso, a irmã Maria Costa, superiora da casa, deu uma relíquia do beato à irmã Maria da Silva Ferreira, que a colocou debaixo do travesseiro de Sorino. Na noite do dia 16, Sorino estava a morrer. Todos os aparelhos mostravam que não existiam sinais vitais. A irmã Lisadelle estava com ele e pensou que teria de ir falar com a irmã Maria Costa para organizar a recuperação de irmã Felicita, antes que fosse conhecida a morte do paciente. Pela manhã, Maria chegou e conversaram sobre a forma de organizar a viagem para salvar a irmã.

Por volta do meio-dia, Maria ouviu algo estranho. Olhou para o doente, ele virou a cabeça e disse: “Maria, porque está chorando? Estou com fome”. Algo ali aconteceu. Ele estava muito fraco, o ferimento não melhorava, mas tinha falado. A irmã Felicita, ao saber da melhoria, organizou a viagem da mãe e da esposa de Sorino para Boa Vista, que se juntaram a ele a 20 de fevereiro. Após os cuidados intensivos, Sorino foi levado em março para a casa de repouso indígena, também em Boa Vista, para reabilitação. Dia 8 de maio voltou a Catrimani, acompanhado pela irmã Giuseppina Morelli, administradora da congregação. Felicita convidou a todos para este momento. “Chamei todos os líderes e xamãs. Alguém disse: ‘Só chegam os ossos’. Eles vieram com as suas flechas, armados para a guerra. O avião pousou. Sorino saiu devagar e imediatamente veio até mim, e disse-
-me: ‘Felicita, quero mostrar o caminho que fiz desde o acidente até à maloca’. Ainda restavam alguns vestígios e aí contou-nos o que aconteceu”.

O médico que operou Sorino confirmou que a parte prejudicada era a da coordenação motora, que afeta o caminhar e a fala. Portanto, não está cientificamente explicado como Sorino recuperou e caminhou até à maloca depois do ataque. Felicita acredita que a recuperação teve intervenção divina. “Acho que fomos um instrumento. Sorino poderia ter morrido, mas salvou-se. O Senhor queria dizer algo a estas pessoas e a todos nós”.

Vinte e oito anos depois, Sorino está vivo. Ele e a sua esposa Helena, que não tinham filhos, eram familiares de muitas crianças Yanomami que eram abandonadas por diversos motivos e ficavam aos cuidados de religiosas. “Pelo menos 15”, lembra a irmã Felicita. Sorino também tinha a sua missão.

Em 1998, os xamãs convocaram uma assembleia aberta a missionários, missionários protestantes e órgãos governamentais. Um deles contou um sonho que teve. Os Yanomami muitas vezes acreditam que os sonhos podem passar mensagens. Nesse sonho, o xamã subia uma escada longa em direção ao céu e no fundo havia uma luz mais poderosa do que qualquer outra que ele já tinha visto. “Foi essa a luz que disse à irmã Felicita para agir daquela forma, ou seja, para mandar Sorino para a cidade. A irmã Felicita é uma xamã desse espírito, o mais poderoso de todos”, acreditam os xamãs.

Texto: Marco Bello