Condecoração de António Rego na quinta-feira, 26 de setembro, pelo Presidente da República. Foto © Agência Ecclesia/PR

Ousado e entusiasta, criativo e esteta, rosto e voz de uma geração ímpar, modelo de comunicação da Igreja com o mundo contemporâneo, praticante do diálogo ecuménico e inter-religioso. Estas são alguma das expressões com que amigos e pessoas que com ele trabalharam largos anos caracterizam a personalidade e o trabalho do padre António Rego, que completou 60 anos de ordenação e nesta sexta-feira, 27, às 15h, será homenageado publicamente em Fátima. Ao fim da tarde de quinta-feira, 26, o Presidente da República (sem qualquer informação pública prévia como tem feito noutros casos) condecorou o padre Rego, no Palácio de Belém, com o grau de comendador da Ordem do Infante Dom Henrique.

Realizador e autor de programas de rádio e televisão, bem como de crónicas de jornais, um dos pioneiros de cooperativas e formação em audiovisuais, crítico de cinema, responsável durante anos do Secretariado Nacional das Comunicações Sociais da Igreja Católica, negociador do protocolo entre a RTP e as confissões religiosas, António Rego é desde há muito associado à presença da Igreja Católica nos meios de comunicação como “uma voz de sonoridade envolvente e uma presença quente e irrepreensível perante as câmaras de TV” ou “um repórter do difícil mundo que perseguia, por todos os continentes”, como diz Manuel Vilas Boas, que com ele trabalhou durante 14 anos no programa 70×7, da RTP.

“Incuravelmente um ilhéu”, como dizia o próprio na entrevista para o livro A Ilha e o Verbo (edição Paulinas), conduzida pelo jornalista Paulo Rocha, António Rego nasceu nas Capelas (São Miguel, Açores), em 16 de Maio de 1941. Foi ordenado padre em Junho de 1964, tendo desde logo começado a colaborar em rádios e jornais nos Açores. Em 1968, mudou para o Continente, tendo começado a trabalhar na Rádio Renascença.

A lista de programas que fez, primeiro na emissora católica, depois na actual Antena 1, antes da RTP e TVI, é vasta: Hoje é domingoNota do DiaMeditandoDiálogo com os que SofremEsquema XIIIVerdade e VidaAndar faz caminhoToda a Gente é PessoaO homem sem tempoAlfa e Omega70×7Oitavo Dia. Mas além disso, o autor de Palavra entre palavras (edição Difusora Bíblica), título da crónica que manteve durante anos no Diário de Notícias, foi um dos animadores na formação de milhares de pessoas para a linguagem audiovisual, em todo o país.

Carlos Capucho, doutorado em Cinema pela Universidade Católica, trabalhou com António Rego precisamente nessa época (anos 1970 e início da década de 1980). “Andámos juntos nas lides da comunicação. Tempo breve na rádio, um pouco mais longo na crítica no Boletim Cinematográfico. E tempo largo na produção e na formação da linguagem audiovisual nas fronteiras da Igreja e muito para além dela”, recorda ao 7MARGENS. No Grupo de Pesquisa Audiovisual e no Centro de Produção Audiovisual, “sempre o padre António foi companheiro e motivador criativo, superiormente conhecedor”, acrescenta, desejando, “para ele, ainda, longos anos e saúde”.

“Rosto e voz de uma geração ímpar”

Também Manuel Vilas Boas, igualmente padre e jornalista, recorda esse tempo quase inicial quando António Rego realizava o programa Diálogo com os que sofrem, na Renascença. Foi nessa altura, aos 18 anos, como estudante de Teologia no Porto, que Vilas Boas conheceu António Rego. “A partir daí comecei a realizar com ele programas gravados”, muitas vezes objecto do lápis azul da censura do Estado Novo. “Estávamos no pós-Concílio Vaticano II, em 1968, 69 e 70. O realizador deste programa estava ainda longe dos altos voos que conquistou, sobretudo depois do 25 de abril de 1974, na Radiodifusão Portuguesa, na RTP e na TVI”.

Manuel Vilas Boas resume ao 7MARGENS: “Um mestre exigente. O melhor de todos, ainda que, às vezes, impaciente. Mas sempre totalizante. Um profissional que não precisou de pedir licença ao meio. Um comunicador de corpo inteiro.”

Na noite de 24 para 25 de Abril de 1974, o padre Rego estava na Renascença. Foi chamado pelo funcionário da censura, que queria sujeitar um poema de Natália Correia à apreciação da Secretaria de Estado da Informação. Terá sido enquanto falava com o censor que o programa Limite passou a Grândola, Vila Morena, como senha da revolução.

A implantação da democracia trouxe conflitos laborais que rapidamente evoluíram para tensões políticas. Na Renascença, a questão religiosa acentuou essas tensões – a ocupação dos estúdios por uma parte dos trabalhadores levou a um dos casos mais graves do pós-Revolução. O agravar do conflito, a par de uma doença do pai, levou António Rego a abandonar a Renascença. Há “muitas versões” sobre o que aconteceu, dizia no livro-entrevista citado. “Até aqui nenhuma me convenceu. E para não ser mais uma versão, deixo o caso à história, pois ainda é cedo. A juízo de Deus há muito que o entreguei.”

Olhando de fora, Manuel Vilas Boas sente que ficou uma ferida por sarar para vários protagonistas: “Tenho pena que a hierarquia da Igreja nem sempre tenha lidado com isenção com a sua personalidade em plenitude e que o caso Renascença, nos idos de 1975, vá consumir-se sem a justiça devida. Por causa da verdade conhecida como tal. A do padre Rego e a dos colegas que se envolveram na mesma trama histórica.”

O jornalista Joaquim Franco, actualmente na TVI, que trabalhou também com o padre Rego vários anos no 7ox7, lembra: “Portugal vivia a transição para a democracia. Eram tempos de equívocos. A Igreja procurava um trilho seguro e construtivo no meio da indefinição.” Ele “podia ter sido apenas a pessoa certa naquele tempo, mas foi muito mais do que isso: a acutilância nas palavras, a ousadia narrativa, o ângulo e a abordagem dos temas, fizeram de António Rego o rosto e a voz de uma geração ímpar, porque a oportunidade era ímpar na comunicação da Igreja Católica após a revolução”, resume o jornalista. [Sobre o tema, ver também a entrevista de frei Lopes Morgado publicada na Ecclesia]

Entrevistas aos da vanguarda e aos papas

José Lopes de Araújo, antigo diretor das Relações Institucionais e Arquivo da RTP, não tem dúvidas em dizer que “poucas pessoas terão feito tanto pela Igreja em Portugal no período difícil do pós-revolução como” António Rego”. E, em declarações à Ecclesia, acrescentava: “A sua presença serena na rádio e na televisão, num período em que tudo era posto em causa, ajudaram decisivamente a dar um novo rosto democrático à Igreja.”

Depois de sair da Renascença, António Rego dedicou-se ao trabalho de formação na linguagem audiovisual. Em Outubro de 1979, dá-se o salto para a RTP, a única estação de televisão da época, com o início do programa 70×7, um dos que tem mais longevidade na estação pública.

“Recordo a frescura do 70X7, que procurava romper padrões convencionais para introduzir o evangelho na vida quotidiana, trabalhando a linguagem e os assuntos com a preocupação das fronteiras. Foi uma escola com a qual aprendi muito”, avalia Joaquim Franco.

Nesses longos anos na televisão – primeiro na RTP, depois na TVI, desde 1992 até 2020 – António Rego destaca a reportagem que fez do primeiro encontro inter-religioso de oração pela paz, em Assis (Itália), em 1986. Mas recorda também as entrevistas que fez ao cardeal Ratzinger (futuro Papa Bento XVI), ao Papa João Paulo II, a Madre Teresa de Calcutá, bem como a teólogos de vanguarda como Hans Küng, Henri de Lubac, Bernhard Häring ou os irmãos brasileiros Leonardo e Clodovis Boff.

“A vida e a missão do padre António Rego na comunicação na Igreja e da Igreja em Portugal concretizam o espírito do Concílio Vaticano II”, diz o padre Vítor Gonçalves, director do jornal Voz da Verdade, do Patriarcado de Lisboa, que integrou também a equipa do 70×7. E caracteriza: “Uma Igreja povo de Deus, no mundo e não fora dele, em diálogo e procura com todos, atenta e comprometida com os sinais dos tempos que é fundamental descobrir, protagonizar e comunicar, embebida e alimentada pela palavra de Deus.”

Noutra entrevista feita há 11 anos pelo autor deste texto sobre o Concílio, que deu origem ao livro Quando a Igreja Desceu à Terra (edições Consolata), o próprio admite a importância daquele acontecimento da Igreja Católica para a sua vida: “Pessoalmente, [o Vaticano II] foi um ponto de partida para tudo o que sou e fiz ao longo da minha vida sacerdotal. Lembro o que li, escrevi, proclamei, testemunhei em som ou imagem. Lembro os horizontes que se abriram através de sínodos, documentos, linhas pastorais.”

“Filmando demoradamente florestas vencidas”

No 70×7, duas reportagens de António Rego ficaram nos olhos e na memória de muita gente que as viu: uma sobre os monges da Cartuxa, em Évora; outra sobre a devastação em florestas do Centro do país, depois de grandes incêndios. “Fui filmando demoradamente florestas vencidas com árvores carbonizadas como em estado de expiação ou ofício de defuntos em longos monumentos horizontais de carvão”, descreve o padre Rego na entrevista com Paulo Rocha.

Ambos os programas foram premiados internacionalmente. Vítor Gonçalves agradece ao padre Rego através do 7MARGENS e sublinha: “Com arte e beleza, ousadia e entusiasmo, diálogo e interpelação, em palavras e imagens criou pedaços de evangelho vivo, cheios de pessoas, comunidades, experiências, projectos, que espalhou por onde pôde. Com muitos e, tantas vezes, pouco recursos, oferece-nos uma verdadeira escola da comunicação em Igreja, onde podemos aprender e inventar a sempre provocante missão de anunciar a Boa Nova de Cristo.”

António Estanqueiro, que foi coordenador do 70×7 e trabalhou também no programa Toda a Gente é Pessoa, da então RDP (hoje Antena 1), destaca a dimensão de “comunicador criativo, com grande sensibilidade estética”, do padre António Rego. “Com talento e muito esforço, ele revelou-se um pedagogo atento ao conteúdo e à forma, à palavra e à imagem. Em frente das câmaras, a sua comunicação calma, desinibida, de proximidade e empatia, tem força para atrair crentes e não crentes.”

Em 1992, o padre Rego foi convidado pelo então patriarca António Ribeiro para abraçar o projecto da TVI. “Tinha dúvidas” sobre o projecto, admite: “Como faremos nascer uma televisão de inspiração cristã, dentro do ambiente de concorrência em que surgiram os canais privados em Portugal”, exprime no livro citado.

Avançou, como era seu timbre. Foi director de informação, criou uma editoria de Religião a par das outras (Política, Internacional, Economia, Desporto, etc.), continuou depois como coordenador dos programas religiosos (incluindo a transmissão da missa dominical) e, depois, como autor, produtor e realizador do programa Oitavo Dia, a sua última presença no espaço público.

Procurar e recolher uma série de frutos

Paralelamente, ficou responsável, em 1996, pelo Secretariado Nacional das Comunicações Sociais. Foi nessa fase que se concluiu e assinou o protocolo entre a RTP e as confissões religiosas que deu origem ao programa A Fé dos Homens (primeiro na RTP2, desde Setembro de 1997, depois também na Antena 1, desde Novembro de 2009).

“O padre Rego é um praticante do diálogo ecuménico e inter-religioso, sem preconceitos. Isso ficou evidente não só no espaço que deu no 70×7 a outras religiões, mas sobretudo no seu trabalho na equipa que negociou com a RTP o acordo sobre os tempos de emissão das confissões religiosas”, sublinha António Estanqueiro. Um espaço que, acrescenta Joaquim Franco, salvaguarda a diversidade.

António Rego retirou-se do quotidiano dos ecrãs e das reportagens há quatro anos, quando regressou aos Açores. Mas não abandonou a capacidade de observação simultaneamente arguta e poética. Estanqueiro, amigo de há 50 anos, reconhece ter aprendido “muito” com o padre Rego, “um modelo de comunicação da Igreja com o mundo contemporâneoque deve ser seguido”. E justifica: “Sem deixar os púlpitos das igrejas, sempre actualizado e bom observador dos sinais dos tempos, ele lançou mão dos meios de comunicação para espalhar, com criatividade, os valores do Evangelho.”

Joaquim Franco olha para o presente e o futuro: “Falta hoje, na comunicação da Igreja Católica em Portugal, gente como o padre Rego, capaz de, interpretando e focando os sinais do tempo, se libertar da encriptação – o evangelho não é para eruditos – ou das ideologias da religião que alimentam bolhas, algoritmos e confundem comunicação com proselitismo.” E acrescenta: “Falta quem, como ele, tendo o evangelho como azimute, solte as palavras que seduzem e a poética da voz, ultrapassando preconceitos, sintonizando linguagens, fazendo-se entender em igualdade para chegar a terrenos cada vez mais adversos.”

Como dizia o próprio, em forma de pergunta e resposta, na entrevista sobre o Concílio, em Quando a Igreja Desceu à Terra: “Que mal existe em a Igreja aprender a esperança também com o mundo? A esperança é uma virtude teologal. Mas a Igreja nada perde em reconhecê-la noutros quadrantes. Sabe bem distingui-la das falsas esperanças. Essa foi a sua originalidade. Por isso a esperança que o Concílio alimentou e anunciou não foi plagiato do mundo. Foi sopro directo do Espírito. A esperança nunca é uma moda. E não é justo dizer que a esperança do Concílio foi uma cópia circunstancial das utopias da época. O Concílio procurou e recolheu uma série de frutos que haviam sido semeados mais próxima ou mais distantemente.”

António Rego tem procurado e recolhido até hoje muitos desses frutos.

Texto redigido por António Marujo/jornal 7Margens, ao abrigo de uma parceria com a Fátima Missionária.

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