A irmã Rosita conversa com uma refugiada burundinesa (à esquerda) e outra queniana (à direita) junto ao seu escritório no Instituto de Migração e Direitos Humanos (IMDH), em Brasília. Foto © ACNUR/Marina Calderón

Muitos lhe chamam “mãe” em vez de “irmã”, e isso já diz muito da religiosa scalabrininana que ganhou recentemente o Prémio Nansen – um galardão atribuído anualmente pela ACNUR (Agência da ONU para os Refugiados) para reconhecer o “trabalho extraordinário” de indivíduos ou grupos na proteção dos migrantes. Rosita Milesi não fez por menos: decidiu dedicar-lhes toda a sua vida, e, do alto dos seus 79 anos, promete não ficar por aqui.

“Sempre fui uma pessoa muito determinada, desde a infância. Se assumo alguma coisa, vou virar o mundo de cabeça para baixo para fazer acontecer”, conta a irmã Rosita aos jornalistas da ACNUR, que foram conhecê-la à cidade de Boa Vista, no norte do Brasil, onde a organização que lidera – o Instituto de Migração e Direitos Humanos (IMDH) – apoia refugiados e migrantes da vizinha Venezuela e de outros países.

Também os seus pais eram migrantes – originários de Itália – e desde muito cedo lhe transmitiram “uma fé profunda” e o sentido de solidariedade. Na fazenda onde cresceu, os pais terminavam cada dia de trabalho árduo a rezar em conjunto com Rosita e os seus dez irmãos. Apesar de serem pobres, tinham sempre comida e uma cama a oferecer aos necessitados que batessem à porta.

Com apenas nove anos, Rosita deixou a casa da família, no estado do Rio Grande do Sul, para frequentar a escola de um convento próximo, onde viviam os Missionários Scalabrinianos. A congregação havia sido fundada no final do século XIX precisamente para ajudar os migrantes italianos que chegavam às Américas, e essa missão fundadora viria a definir também a vida e o trabalho da irmã Rosita.

Decidiu integrar a congregação, fez os seus votos em 1964, quando tinha 19 anos, e passou as duas décadas seguintes a trabalhar com os mais pobres, numa escola e num hospital da instituição. Durante esse tempo, e apesar das resistências de alguns, licenciou-se em Direito.

“Quando me perguntavam porque é que eu estava a tirar esse curso, eu dizia: ‘Vou ser advogada dos pobres’, porque essa era a nossa missão naquela época: ajudar pessoas necessitadas”, explica.

A sua formação jurídica, altruísmo e determinação fizeram com que, quando os Scalabrinianos decidiram, na década de 1980, regressar às suas raízes para ajudar sobretudo refugiados e migrantes, fosse a escolhida para ficar à frente do Centro de Estudos Migratórios que então criaram na capital, Brasília.

Quando o projeto de Lei de Refugiados do Brasil foi proposto em 1996, foi o seu empenho que tornou possível ampliar a definição de refugiado, de acordo com a Declaração de Refugiados de Cartagena de 1984, garantindo que muito mais pessoas procurando proteção internacional pudessem ser incluídas na lei adotada em 1997.  “Até escrevi para o Vaticano, pedindo que eles enviassem uma carta ao governo brasileiro dizendo o quão importante era expandir o conceito de refugiado. E eles enviaram a carta, graças a Deus” recorda. A sua intervenção foi igualmente relevante aquando da adoção da Lei de Migração do Brasil em 2017.

Atualmente, a irmã Rosita coordena uma rede de cerca de 70 organizações nacionais que apoiam refugiados, migrantes e comunidades locais. E integra o Comité Nacional para os Refugiados (CONARE) e o conselho de direção da Fundação Scalabriniana, tendo publicado vários artigos académicos sobre o deslocamento forçado e a migração. “Sempre tive a capacidade de fazer três, quatro, cinco coisas ao mesmo tempo”, diz com naturalidade.

Prestes a completar 80 anos, a sua energia parece inesgotável. Todos os dias, trabalha – juntamente com as suas equipas no IMDH – para melhorar as vidas de algumas das 790.000 pessoas que precisam de proteção internacional no Brasil, oriundas de 168 países diferentes, incluindo Venezuela, Haiti, Afeganistão, Síria, Iraque, Burkina Faso, Mali e Ucrânia.

Com o apoio de parceiros, incluindo a própria ACNUR, o IMDH ajuda sobretudo mulheres, crianças e grupos vulneráveis ​​no acesso a documentação, assistência social e emprego formal. Além disso, distribui kits de saúde e nutrição, e dá apoio financeiro e aconselhamento para que os refugiados possam criar os seus próprios negócios.

Elizabeth Tanare, 38 anos, venezuelana, chegou ao Brasil com o seu marido em 2023, e acaba de abrir a sua clínica de massoterapia, confirmando que o trabalho desenvolvido pelo IMDH está a dar frutos. “Aqui eles apoiaram-nos, deram-nos orientação, e ao fim de três meses, sentimo-nos integrados na sociedade brasileira”, diz a migrante, entrevistada pela ACNUR. “A irmã Rosita ajudou-nos com a compra de equipamentos, incluindo uma mesa de massagem, para que pudéssemos começar a trabalhar. Ela é a peça do puzzle que une tudo, faz ligações com outras instituições e está sempre em contacto com todos”.

Jana Alraee, uma ex-professora que chegou a Brasília em 2014 com o seu marido engenheiro e três filhas, após terem fugido da guerra na capital síria, Damasco, é outra prova viva de como a religiosa faz realmente a diferença na vida destes migrantes.

Tendo esgotado todas as poupanças que haviam levado consigo e incapazes de falar a língua portuguesa ou de encontrar um trabalho regular, Jana e o marido consideraram regressar à Síria… até que uma amiga os apresentou à irmã Rosita. A religiosa arranjou-lhes um professor de português, ajudou-os a abrir um restaurante de comida tradicional síria e, o mais importante, tornou-se uma amiga sempre presente e fonte de apoio para a família.

“Quando alguém foge do seu país por causa da guerra, deixa tudo para trás, a sua família, a mãe, o pai… todos. Então, quando se conhece alguém como a irmã Rosita com um coração tão bom, e ela dá amor, conselhos… Eu chamo-lhe ‘mãe’, não a chamo de ‘irmã’, porque ela dá-me o que sinto falta,” diz Jana, apertando a mão da irmã Rosita nas suas. “Se eu me sinto perdida, ela põe-me de volta no caminho certo… ela está sempre comigo, sempre”.

Nas pisadas do humanista Fridtjof Nansen

Rosita Milesi é a segunda brasileira a receber o Prémio Nansen, depois de em 1985 este ter sido atribuído ao cardeal Paulo Evaristo Arns.

O galardão homenageia Fridtjof Nansen, explorador norueguês dedicado às causas humanitárias que foi o primeiro Alto Comissário para Refugiados da Liga das Nações, órgão precursor da ACNUR.

Cientista, diplomata e ativista pelos direitos humanos, Nansen foi ele próprio galardoado com o Prémio Nobel da Paz em 1922, depois de ter conseguido a repatriação de 450 mil prisioneiros da Primeira Guerra Mundial.

Além de ter ajudado centenas de milhares de refugiados a voltar para casa, os seus esforços permitiram que muitos outros se tornassem residentes legais e conseguissem trabalho nos países onde haviam encontrado refúgio.

Nansen percebeu que um dos maiores problemas enfrentados pelos refugiados era a falta de documentos de identificação internacionalmente reconhecidos. A sua solução, que ficou conhecida como “passaporte de Nansen”, foi o primeiro instrumento jurídico para a proteção internacional dos refugiados.

Instituído em 1954, o Prémio Nansen deste ano é entregue à Scalabriniana brasileira nesta segunda-feira, 14 de outubro, em Genebra (Suíça). Serão ainda premiadas outras quatro mulheres, que venceram nas categorias regionais.

Em África, Maimouna Ba, uma ativista baseada no Burkina Faso que ajudou mais de 100 crianças deslocadas a regressar às salas de aula e capacitou 400 mulheres deslocadas a ganhar independência financeira.

Na Ásia-Pacífico, Deepti Gurung, uma ativista nepalesa que fez campanha para reformar as leis de cidadania do país, depois de saber que duas filhas se tinham tornado apátridas.

Na Europa, Jin Davod, uma jovem empreendedora social, que se baseou na sua própria experiência como refugiada para criar uma plataforma que presta apoio em matéria de saúde mental a sobreviventes de traumas, incluindo refugiados e comunidades locais.

E, por fim, no Médio Oriente e Norte de África, Nada Fadol, uma refugiada sudanesa que mobilizou ajuda essencial para centenas de famílias que fugiram para o Egito em busca de segurança.

Será ainda atribuída uma menção honrosa ao povo da Moldávia pelos seus esforços coletivos para acolher mais de um milhão de pessoas que fugiram da guerra na Ucrânia. A cerimónia poderá ser acompanhada em direto, na página da ACNUR, a partir das 18h30 de Lisboa.

Texto redigido por Clara Raimundo/jornal 7Margens, ao abrigo da parceria com a Fátima Missionária