Acarinhado por Paulo VI, perseguido por João Paulo II e pelo cardeal Ratzinger e reabilitado pelo Papa Francisco, morreu esta terça-feira, 22 de outubro, em Lima (Peru) o padre dominicano Gustavo Gutiérrez, pai da teologia da libertação. Tinha 96 anos e a sua reflexão teológica influenciou toda uma geração de católicos latino-americanos e gerou seguidores noutros continentes. A ele se deve a tematização da “opção preferencial pelos pobres” que a Doutrina Social da Igreja assume como centralidade incontornável da fé em Jesus Cristo.
“A teologia da libertação é uma reflexão a partir da práxis histórica do homem. Procura pensar a fé a partir da práxis histórica e do modo como é vivida a fé nesse compromisso libertador. (…) a libertação de Cristo não se reduz à libertação política, mas dá-se em factos históricos e políticos libertadores. Não é possível saltar essas mediações”(1), dizia em agosto de 1973 Gustavo Gutiérrez na intervenção com que animou o seminário sobre fé e política organizado em Lima pelo secretariado latino-americano da JECI-MIEC (Juventude Escolar Católica Internacional/Movimento Internacional de Estudantes Católicos).
No texto, posteriormente traduzido e editado pela JEC portuguesa, Gutiérrez sintetizava as intuições fundamentais da teologia da libertação, que sempre apresentou como um aprofundamento da espiritualidade dos movimentos da Ação Católica vivida a partir do ver-julgar-agir próprios da metodologia de “revisão de vida” de Joseph Cardjin. O “ver” a partir do olhar dos pobres e oprimidos seria a origem de todos os seus futuros enfrentamentos com parte da hierarquia católica. Para “ver” e perceber a situação de exploração em que a esmagadora maioria dos povos da América Latina vivia, Gutiérrez recorria ao arsenal intelectual marxista, afirmando inclusive: “Seja como for, a teologia contemporânea terá de se fazer em confronto fecundo e inevitável com o marxismo.”(2)
Se o “julgar” as situações analisadas decorria e procurava fundamento no cerne mais tradicional do ensinamento cristão, com recurso à narrativa da libertação do povo hebreu do cativeiro egípcio, às profecias de Isaías e à vida de Jesus, incluía também a identificação da salvação oferecida por Cristo com a necessária libertação dos oprimidos de todo o mundo.
Contudo, o “agir”, a práxis, sempre ocupou o lugar central da reflexão teológica de Gustavo Gutiérrez, no que alguns descortinavam novo desvio marxista. “A fé em Deus que nos ama e que nos chama ao dom da comunhão plena com Ele e à fraternidade entre os homens, não só não é alheia à transformação do mundo como conduz necessariamente à construção dessa fraternidade e dessa comunhão na história.”(2) O compromisso com a libertação dos pobres e oprimidos não é, para o teólogo peruano, apenas uma consequência inescapável de todo aquele que professa a fé em Jesus Cristo, mas é também o lugar a partir do qual é possível dizer e pensar a fé.
Já em 1971, escrevia no seu livro seminal Teologia da Libertação. Perspectivas, que acabou por dar nome à corrente latino-americana que tinha esses horizontes: “A reflexão teológica será, necessariamente, uma crítica da sociedade e da igreja, enquanto chamadas e interpeladas pela palavra de Deus; será uma teoria crítica, à luz da palavra aceite na fé, animada por uma intenção prática e indissoluvelmente unida, por conseguinte, à práxis histórica”.
Buscar Deus a partir do sofrimento
Cruzámo-nos pela primeira vez em julho de 1975, em Lima, no encontro mundial do MIEC que decorreu naquela cidade. Ele já era famoso, mas era naquela ocasião, sobretudo, o assistente da UNEC (União Nacional dos Estudantes Católicos, do Peru). Eu integrava a equipa da Juventude Estudante Católica Internacional (JECI) a que a UNEC estava filiada. Apresenta-se um homem pequenino, muito marcado pela sua ascendência indígena, de passo incerto – consequência da osteomielite que sofrera em criança e que o condenou a uma cadeira de rodas entre os 12 e os 18 anos –, mas olhar vigoroso e penetrante, crescendo à medida que falava, arrebatado pela palavra e arrebatador na sua exposição. Sentia-se a urgência da libertação de que nos falava, não como um projeto pré-elaborado a concretizar, mas como procura permanente e sempre sujeita a crítica de resposta ao sofrimento de um povo oprimido e miserável.
Em todas as vezes que nos cruzámos nessa segunda metade dos anos setenta do século passado retive essa quase sua ‘obsessão dolorosa’ pelo sofrimento do seu povo. Ela constituía, julgo eu, o pilar mais fundo da sua espiritualidade. Os que viam nele um ideólogo enfeudado ao marxismo nunca perceberam o que o movia e quanto a sua busca de Deus era marcada pela certeza de apenas Nele encontrar a resposta (salvação) para a realidade do sofrimento. É essa busca, omnipresente na sua vastíssima obra, que está definitivamente exposta no livro Hablar de Dios desde el Sufrimiento del Inocente. Una Reflexión sobre el Libro de Job” publicado em Lima, em 1986. Como escreve Ademir Guedes Azevedo no obituário publicado no portal Unisinos: “A pergunta base que sempre moveu este teólogo do calvário foi: como dizer aos pobres que Deus os ama?”.
Gustavo Gutiérrez era também um formidável orador e temível opositor. A sua imensa cultura – dava a impressão de ter lido todos os teólogos europeus que de um modo ou de outro tinham influenciado o Concílio Vaticano II, todos os filósofos europeus significativos e ainda os mais importantes intelectuais latino-americanos, com destaque para o seu amigo José Carlos Mariátegui – permitia-lhe contrariar (quando não arrasar!) os opositores da sua visão do mundo e da Igreja. A sua capacidade argumentativa podia ser realmente feroz quando confrontado com discursos teológicos apaziguadores que, segundo ele, escamoteavam a realidade da opressão estrutural propondo um agir contra a pobreza baseado na caridade individual.
A bibliografia que Gustavo Gutiérrez nos deixa é vasta e aqui pode ser encontrado um bom resumo dela. Além dos companheiros e discípulos da teologia da libertação que se tornaram, como ele, conhecidos em todo o mundo, o teólogo peruano inspirou também o estudo e o reconhecimento da importância da religiosidade popular, conceito e atenção que uma vez e outra surge nos escritos do Papa Francisco.
“Agradecemos a Deus por ter tido um sacerdote teólogo fiel que nunca pensou em dinheiro, nem em luxos (…). Pequeno como era, com a sua pequenez soube anunciar-nos o Evangelho com força e coragem”, escreveu o cardeal Carlos Castillo, arcebispo de Lima, em reação à morte de Gustavo Gutiérrez, acrescentando: “Ele foi um defensor incansável da opção preferencial pelos pobres, frase que cunhou e que foi integrada no magistério da Igreja como caminho fundamental para viver a nossa fé”.
Notas:
(1) Praxis Política e Fé Cristã de Gustavo Gutiérrez – edição policopiada da JEC portuguesa, sem data, provavelmente de 1975
(2) Teologia de la Liberación. Perspectivas de Gustavo Gutiérrez– 5ª edição. Ediciones Sígueme, Salamanca 1974. Pág.s 32/33
As exéquias de Gustavo Gutiérrez iniciaram às 13h locais (7h da manhã em Lisboa) deste dia 24, em Lima. O arcebispo Carlos Castillo Mattasoglio presidiu à missa de corpo presente, transmitida em várias plataformas da Ordem Dominicana do Peru (incluindo a página no Facebook). Depois da missa, o corpo será trasladado até à paróquia de Cristo Redentor, para uma homenagem da comunidade onde Gutiérrez foi pároco. O “profeta dos pobres”, como lhe chamou a Ordem Dominicana no Peru, será sepultado no cemitério El Angel, no mausoléu dos Padres Dominicanos às 16h30 (10h30 em Lisboa).
Texto redigido por Jorge Wemans/jornal 7Margens, ao abrigo da parceria com a Fátima Missionária.