Francisco entendeu que o documento votado no último sábado tem já “indicações muito concretas para a missão das igrejas”. Foto © Vatican Media

O Sínodo católico sobre a Sinodalidade acabou? Sim e não.

Sim, acabou o tempo – três anos – de preparar uma etapa nova da Igreja Católica, aferida pelo seu processo sinodal, que o Papa Francisco sonhou e pôs em prática. Não acabou, visto que falta o maior desafio do Sínodo: concretizar o projeto a que mais de 350 membros qualificados e diversificados dos vários continentes deram forma, a partir da auscultação das igrejas locais e que está desenhado no documento final, aprovado no último sábado, 26 de outubro.

Até agora, estávamos habituados aos sínodos bem oleados de uma igreja piramidal que propunham as suas conclusões ao bispo de Roma, o qual traçava um rumo universal, confirmando, enfatizando ou esquecendo aquilo que melhor entendesse, através de uma “exortação apostólica”. Desta vez não foi assim. Francisco, presidente do Sínodo, foi um participante quase diário nas sessões plenárias, numa mesa de pequeno grupo, como os restantes membros. A metodologia adotada, de escuta, diálogo e discernimento, em que todos e todas puderam exprimir-se, permitiu chegar a um resultado que o próprio Papa entendeu dever assumir e mandar publicar.

Reconhecendo o valor do caminho sinodal vivido nas duas sessões, ao longo de outubro de 2023 e de outubro de 2024, Francisco entendeu que o documento votado no passado sábado, alínea a alínea, por uma maioria de dois terços possui já “indicações muito concretas que podem servir de guia para a missão das igrejas, nos diversos continentes, nos diversos contextos”. E, consequentemente, exortou as igrejas locais a começar a trabalhar.

“Pede-se às Igrejas locais – salienta o ponto 9 do documento – que continuem o seu caminho quotidiano com uma metodologia sinodal de consulta e discernimento, identificando formas concretas e percursos formativos para realizar uma conversão sinodal palpável nos vários contextos eclesiais (paróquias, institutos de Vida Consagrada e Sociedades de Vida Apostólica, movimentos de fiéis, dioceses, conferências episcopais, agrupamentos de Igrejas, etc.)”.

Rompendo com o que se poderia designar por “cultura da uniformidade”, em favor de uma “integração orgânica das legítimas diversidades” (nº. 39), abre-se um campo de ação em torno de distintas áreas, em que se pode desde já avançar.

Mas o que traz, afinal, esse documento, que se possa agarrar desde já?

Sem pretensão de tocar em todos os pontos relevantes deste extenso texto, e recordando que algumas delas foram já divulgadas pelo 7Margens, adiantam-se duas matérias sensíveis.

 A formação para a sinodalidade, como vai ser?

A formação de todos os membros da Igreja, qualquer que seja o seu lugar ou estatuto, foi uma das matérias mais salientes do período de auscultação sinodal e ocupa um lugar de destaque no documento final. Não se põe de parte a necessidade de adquirir conhecimentos, mas enfatiza-se uma formação “integral, contínua e partilhada”, capaz de “questionar todas as dimensões da pessoa (intelectual, afetiva, relacional e espiritual) e incluir experiências concretas”.

O Sínodo reconhece a importância dos múltiplos espaços e instituições ligados à Igreja, por ela inspirados ou onde os cristãos desenvolvem a sua atividade, que são recursos necessários para as tarefas formativas de todo o Povo de Deus. Mas ao mesmo tempo, valoriza também locais de serviço e trabalho com os marginalizados, bem como experiências missionárias e voluntárias, através dos quais “a comunidade manifesta a sua capacidade de educar para o discipulado e de acompanhar no testemunho, num encontro que muitas vezes reúne pessoas de diferentes gerações”.

Quanto à especificidade da “formação sinodal partilhada para todos os batizados”, considera-se que ela implica “uma disponibilidade interior para se deixar enriquecer pelo encontro com os irmãos e irmãs na fé, superando preconceitos e visões parcelares”, mudança de mentalidade que pode beneficiar bastante da dimensão ecuménica.

Dando eco a solicitações de diversos setores, importa que a formação daqueles que se preparam para um ministério ordenado deverá ser configurada segundo o espírito sinodal e muito ganhará de uma presença e intervenção de “figuras femininas instruídas na vida quotidiana das comunidades e uma educação para colaborar com todos na Igreja e praticar o discernimento eclesial”.

Ainda no que se refere à formação do povo de Deus para a sinodalidade, considera-se relevante uma formação para o testemunho nos ambientes e culturas digitais, dada a atenção que mobilizam de largos setores da população e, especificamente, cristãos.

Também os temas da doutrina social da Igreja deveriam merecer uma maior abordagem entre o povo de Deus, “para que a ação dos discípulos missionários influencie a construção de um mundo mais justo”. Entre os temas, são mencionados o compromisso com a paz e a justiça, o cuidado da casa comum, o diálogo intercultural e inter-religioso, o compromisso com a defesa da vida e dos direitos humanos, com a ordem justa da sociedade, com a dignidade do trabalho, com uma economia justa e solidária e com uma ecologia integral”.

Transparência e prestação de contas na vida da Igreja

Um capítulo relevante da implementação de um estilo sinodal na vida da Igreja tem a ver com a participação ativa de todos e todas nos órgãos e estruturas das paróquias, associações, movimentos e nas próprias instâncias (inter)diocesanas, e nos processos de tomada de decisão que nessas instâncias ocorrem (ver 7Margens).

Acontece que “a tomada de decisões não encerra o processo decisional”, como faz notar o documento sinodal (nº 95), dado que deve ir acompanhada e ser seguida de práticas de prestação de contas e de avaliação, num espírito de transparência inspirado em critérios evangélicos. Trata-se de práticas que, salvo exceções, estão arredadas do funcionamento habitual na Igreja, e, para alterar esta “cultura”, vai ser necessário um trabalho aturado que, a partir de agora, passará a ser mais escrutinado.

Não pode estar em causa, certamente, o respeito pela privacidade e a confidencialidade, a proteção das pessoas, a sua dignidade e os seus direitos, mesmo contra reclamações indevidas por parte das autoridades civis, e, muito menos, o segredo da confissão. Também não se trata de meros “procedimentos ou requisitos administrativos ou de gestão”, mas, como refere o ponto 96, de respeito por valores como “verdade, lealdade, clareza, honestidade, integridade, coerência” e, correlativamente, de “rejeição da opacidade, hipocrisia e ambiguidade e ausência de segundas intenções”. Em suma trata-se de instaurar e alimentar um clima de confiança e credibilidade de que “uma Igreja sinodal, atenta às relações, não pode prescindir”.

A ausência destas práticas “é uma das consequências do clericalismo e, ao mesmo tempo, alimenta esse clericalismo”, considera o Sínodo. “Baseia-se no pressuposto implícito de que as autoridades da Igreja não são responsáveis ​​pelas suas ações e decisões, como se estivessem isoladas ou acima do resto do povo de Deus” (nº 98).

E o que abrange este princípio? O texto salienta que não apenas a matérias óbvias como “abusos sexuais, financeiros e outros”, mas também “ao estilo de vida dos pastores, aos planos pastorais, aos métodos de evangelização e ao modo como a Igreja respeita a dignidade da pessoa humana, por exemplo, no que diz respeito às condições de trabalho nas suas instituições”.

As medidas a tomar poderão passar por práticas regulares tais como “construção sinodal de procedimentos eficazes de prestação de contas”; “avaliação periódica do modo como se exercem as responsabilidades ministeriais” (não para julgar as pessoas, mas para estimular práticas melhores); publicação de relatórios de situação, incluindo financeira e patrimonial; medidas preventivas de abusos; participação dos leigos nas tomadas de decisão; etc.

Um “esforço comunicativo” de participação, escuta e diálogo

Para evitar o risco de converter práticas deste tipo em tarefas burocrático-administrativas, agravando ainda mais o estado de coisas atual, o Sínodo põe a ênfase no “esforço comunicativo”, de participação, escuta e diálogo, tomado como “uma poderosa ferramenta educativa”, não apenas para mudar a cultura da Igreja, mas também para “permitir dar maior visibilidade a muitas iniciativas valiosas da Igreja e as suas instituições, que muitas vezes permanecem ocultas”.

Os dois capítulos aqui destacados – formação para a sinodalidade e transparência e prestação de contas – não podem, obviamente, ser desligados do mapa de horizontes e desafios que o projeto de uma Igreja sinodal pretende abrir. Outros pontos poderão concorrer para tornar estas propostas mais viáveis. De qualquer modo, o que isto mostra é que sinodalidade não é “conversa fiada” para ocupar reuniões ou para uns cursos mais ou menos espetaculares. Para não se tornar um pesadelo a somar aos que a vida quotidiana já coloca, implica a disponibilidade para uma profunda conversão, como o documento repetidamente sublinha.

O caminho passa, em primeiro lugar, por ler o documento. Quem quiser digeri-lo, não vai bastar uma vez nem duas. Ele não é nem uma bíblia nem um receituário. Exige que se capte o seu espírito. Que se converse. Que se confronte o que ele propõe com o ponto onde estamos. Que se definam prioridades. Sobretudo, que nunca se perca a perspetiva de que o referencial fundamental continua a ser o Evangelho e que o sentido do caminho a fazer é que ele seja um modo de vida (em abundância) e não um “modo de morte”.

Portanto, o Sínodo não acabou. Ainda mal começou.

Texto redigido por Manuel Pinto/jornal 7Margens, ao abrigo da parceria com a Fátima Missionária.