“Celebrámos em 2023 os 30 anos dos Acordos de Oslo, que foram extremamente importantes no sentido em que pela primeira vez houve uma aceitação recíproca, mútua, um reconhecimento, por parte do outro lado. Em Oslo, pela primeira vez, o lado palestiniano reconheceu a existência de Israel. Israel tinha, na altura, 45 anos e precisava desesperadamente de um acordo de paz. Assim, pela primeira vez na história os palestinianos reconheceram Israel e Israel reconheceu a Palestina”, diz Zvia Valdan, filha de Shimon Peres, que foi ministro dos Negócios Estrangeiros, primeiro-ministro e presidente de Israel. Foi como chefe da diplomacia que Peres recebeu o Nobel da Paz, juntamente com o primeiro-ministro Yitzhak Rabin e o lider da OLP Yasser Arafat. Valdan, hoje com 78 anos, conta o orgulho e a esperança com que assistiu em setembro de 1993 à assinatura do acordo israelo-palestiniano e em dezembro de 1994, também na capital norueguesa, à cerimónia do Prémio Nobel.
Nascida ela própria dois anos antes da criação do moderno Israel, Valdan conheceu figuras como o primeiro-ministro David Ben-Gurion, que proclamou o novo país em 1948, ou Golda Meir, mais tarde primeira-ministra. As suas memórias de Ben Gurion, que foi uma espécie de patrono de Peres, são boas, mas de Meir, que sempre simpatizou mais com Rabin, nem tanto: “O grande erro de Golda Meir foi ter recusado a existência da entidade palestina. Não se pode chegar a um lugar onde vivem pessoas há seis, sete, oito, dez gerações e dizer que essas pessoas não existem como uma entidade. É verdade que eles não tinham infraestruturas. Estamos, por exemplo, a falar de escolas politécnicas. Israel só foi fundado em 1948, mas o nosso Technion, em Haifa, foi criado em 1913. Quase 40 anos antes de o Estado de Israel existir, Israel já tinha uma escola técnica, uma biblioteca, uma universidade. Portanto, os judeus já estavam a instalar infraestruturas muito antes do Estado de Israel existir. Os palestinianos estavam sob um sistema que dava muito poder, não ao povo, mas à gente que os explorava de muitas maneiras, portanto não tinham as mesmas infraestruturas”.
Peres nasceu em 1923 na atual Bielorrússia, Ben-Gurion na Polónia e Meir na Ucrânia (mas a família emigrou para os Estados Unidos e ela viveu em jovem na América). Todos militaram no movimento sionista, fundado pelo judeu austro-húngaro Theodore Herzl, que sonhava criar um novo país para o povo judeu, com capital em Jerusalém. Pouco a pouco, milhares de judeus europeus emigraram para a Palestina, então governada pelo Império Otomano, e continuaram a emigrar durante a época de controlo britânico. Depois do Holocausto, e do fim da Segunda Guerra Mundial, as Nações Unidas votaram em 1947 para uma divisão da Palestina em dois Estados, um judaico e o outro árabe. Mas os países árabes recusaram o plano de partilha da ONU e em 1948 invadiram Israel, que resistiu e venceu, conquistando mais território e obrigando milhares de palestinianos a refugiarem-se na Faixa de Gaza e na Cisjordânia ou em países vizinhos como o Líbano, a Jordânia e a Síria.
“O meu pai nunca teve qualquer dúvida sobre o direito de os palestinianos terem um Estado. O meu pai era a favor de uma confederação”, explica Valdan, que esteve em Portugal no ano passado, mas esta conversa só agora é publicada, pois devido ao massacre de 7 de outubro de 2023, foi necessário voltar a falar com a professora de linguística sobre a relação israelo-palestiniana, atualmente num dos seus piores momentos, mesmo que Valdan garanta que continua otimista sobre a paz.
Questionada sobre como é que Peres via os árabes israelitas, descendentes dos palestinianos que não fugiram e hoje são 20 por cento dos 9,5 milhões de israelitas, responde: “O meu pai sempre considerou os cidadãos árabes de Israel, que gostam de ser chamados cidadãos palestinianos de Israel, como iguais e como parceiros, nunca os diferenciou. Eles são iguais, porque cresceram em Israel. Os palestinianos que vivem do outro lado, infelizmente não têm um Estado próprio e vivem em condições muito precárias, mas os palestinianos que são cidadãos israelitas sentem que os podem ajudar, mas não querem viver fora de Israel que é o seu país nativo e onde têm todos os direitos”. Apesar de ter havido já quatro grandes guerras israelo-árabes, os cidadãos árabes de Israel têm sido esmagadoramente leais ao Estado, mesmo agora que já morreram mais de 40 mil palestinianos em Gaza na guerra de retaliação contra o ataque terrorista do Hamas que há pouco mais de um ano matou mais de 1200 israelitas, com outros 200 a serem sequestrados e levados para território palestiniano. Em Israel vivem 150 mil árabes cristãos, e esta comunidade também está presente na Cisjordânia (45 mil) e em Gaza (cerca de mil antes do início da atual guerra). A esmagadora maioria dos árabes israelitas tal como dos palestinianos é muçulmana. Atento ao sofrimento no Médio Oriente, o Papa Francisco tem apelado a um cessar-fogo, denunciando em especial o sofrimento das crianças e pedindo aos cristãos da região (incluindo no Líbano) para não se deixarem “submergir pela escuridão que vos cerca”.
Mesmo nestes tempos difíceis, em que Israel está em guerra também com o Hezbollah no Líbano e contra o Irão, Valdan continua convicta de que a mensagem de paz do pai está bem presente: “Completamente. Nós fundámos um centro para a paz e inovação para dar continuidade ao legado do meu pai em duas direções fundamentais. Uma delas é a paz. Nunca desistir da paz, continuar sempre a tentar”. E fala de bons exemplos no passado: “Tivemos uma iniciativa, que foi chamada a Iniciativa de Genebra, em que juntámos um grupo de 40 palestinianos e 40 israelitas numa mesma sala donde ninguém saía antes de estar assinado um tratado de paz. Conseguimos! Assinámos um tratado de paz. Ainda não foi adotado efetivamente, mas está em cima da mesa, digamos assim. O tratado foi lançado pelo vice-ministro dos Negócios Estrangeiros do meu pai, Yossi Beilin”. Assinado em 2003 na cidade suíça conhecida como uma das capitais mundiais da diplomacia, a Iniciativa de Genebra prevê dois Estados, Jerusalém como capital de cada um deles, com os bairros judaicos sob soberania israelita e os bairros árabes sob soberania palestiniana, com garantias de respeito pelos lugares santos judaicos, islâmicos e cristãos.
Sobre o campo defensor de um compromisso com os palestinianos ser agora politicamente muito fraco em Israel, a filha de Peres diz que é uma ideia errada. “Quem diz isso está enganado. Hoje em dia, a esquerda e a direita no país estão muito equilibradas, com uma pequena vantagem para a direita, mas quando são feitas sondagens descobrimos sempre uma grande maioria a favor dos Dois Estados, chega aos 71 por cento. Portanto, apesar de haver uma leve maioria de direita, o lado da paz é sempre maioritário”, garante Valdan.
Quando negociaram com a OLP (ou Fatah, a sua principal força), Peres e Rabin acreditavam que os palestinianos também queriam a paz. Agora estão completamente divididos entre o Hamas, grupo islamita que controlava Gaza, e a Fatah, que governa na Cisjordânia. Valdan mesmo assim confia que é possível negociar: “Sem dúvida que sim. Em primeiro lugar, é preciso uma liderança que luta pela paz, além de que o mesmo fenómeno que acontece em Israel também acontece na Palestina – por muito divididos que estejam, também existe uma maioria que quer a paz. Acredito que querem fazer a paz com Israel, mas querem que Israel reconheça a identidade deles, a sua existência, a sua autonomia. Esse reconhecimento já foi assinado há 30 anos nos Acordos de Oslo. Agora, há outra coisa que pode ajudar que são os Acordos de Abraão. Quando o meu pai lutava pelo que viriam a ser os Acordos de Abraão costumava ir a todos aqueles Estados árabes, como o Dubai, o Bahrein, Qatar, Omã… Portanto o meu pai lançou os alicerces dos Acordos de Abraão. Os Acordos de Abraão abrangem os países muçulmanos que desejem falar da paz com Israel, que reconheçam totalmente Israel, mas Israel também tem de reconhecer totalmente a Palestina. Claro que eu sou filha do meu pai, mas também sou uma ativista pela paz”.
“Falando de linguística, que é a minha área, sublinho que o hebraico e o árabe são línguas irmãs, muito próximas uma da outra. Embora o árabe seja falado por todo o mundo e o hebraico só tenha 10 milhões de falantes, continuam a ser línguas irmãs. Portanto, Israel tem de se assegurar que a região do Médio Oriente se torne no que o meu pai sempre disse: o Novo Médio Oriente. Se ouvirmos os oradores de hoje, ouvimos falar exatamente da mesma coisa, de Israel e a Palestina se reconciliarem como dois Estados vizinhos, como dois irmãos que partilham línguas irmãs. Israel é o Estado da inovação muito à frente dos seus vizinhos, mas os países muçulmanos também podem juntar-se a nós, também querem tornar-se nações inovadoras, também têm as suas ideias. A ideia do meu pai era mobilizar a inovação para a paz e mobilizar a paz para a inovação”, acrescenta Valdan.
Sobre se depois do massacre de 7 de outubro de 2023, e com reféns ainda em Gaza, mantém hoje a crença na paz, a filha de Peres afirma: “Bem, acho que o que aconteceu ilustra ainda melhor o quão importante é resolver a questão desde suas raízes, desde o desacordo básico. É extremamente importante. Então, se Israel tivesse resolvido esse problema, talvez não estivéssemos na situação em que estamos agora. Enquanto não houver uma resolução para viver juntos, Israel e Palestina lado a lado, não haverá paz. Isso é claro. E não há razão para Israel não aceitar um estado palestiniano ao lado dele, lado a lado”. Novas lideranças são necessárias para a paz? A resposta desta crítica assumida do primeiro-ministro Benjamin Netanyahu é: “Sim, do lado israelita e do lado palestiniano. Os povos preferem viver em paz”.
Texto: Leonídio Paulo Ferreira, Jornalista do DN