As descrições dos repórteres e mesmo as imagens televisivas ficam sempre aquém da realidade da tragédia que, em poucas horas, devastou vastíssimas zonas da Comunidade Valenciana, em Espanha, inundando, destruindo e matando. Vários dias depois e ainda há locais onde os socorros não conseguiram chegar.
Mas as grandes tragédias desencadeiam pequenos e grandes gestos de humanidade. Especialmente aquelas que destroem zonas muito povoadas e que deixam os sobreviventes em estado de choque, feridos no corpo e na alma, vagueando sem saber o que fazer à vida que lhes foi poupada.
Começam a conhecer-se muitos desses gestos. De pessoas dependuradas em sítios onde a torrente surgiu do nada, que mantiveram agarrados náufragos que estavam já no turbilhão da corrente; uns aguentaram, outros não. Foram os motoristas de camiões que se organizaram para deixar subir passageiros de carros, quando as águas começaram a subir. Foi o pároco da localidade de Paiporta, uma das mais massacradas, que se deu conta de que seis mulheres, surpreendidas pela corrente, estavam penduradas em parapeitos do lado de fora da igreja a bater desesperadamente e em risco de serem levadas, e que, num esforço improvável, conseguiu salvá-las. Pequenas histórias como estas devem ser muitas, umas bem sucedidas, outras não.
Quarta, dia 30, e quinta, dia 31 de outubro, enquanto bombeiros, Proteção Civil, Cruz Vermelha se instalavam no terreno, tomava-se consciência de que o desastre revestia proporções muito mais extensas e profundas do que se pensava. Iam chegando os apelos desesperados de muitos sobreviventes e a perceção de que os desaparecidos deveriam ser muitos mais. Ao mesmo tempo, tornavam-se percetíveis as dificuldades de responder com os socorros necessários e de coordenar estrategicamente esses socorros.
Por coincidência, o dia 1 de novembro era “festivo”, como dizem os espanhóis, ainda que a maré estivesse pouco para festa. Mas, como se todos tivessem tido o mesmo pensamento, apoiados nas redes sociais, eis que uma verdadeira multidão se levanta e se põe a caminho, disposta a ajudar quem precisa.
A pé, porque as estradas estão bloqueadas e intransitáveis, filas enormes de gente, sobretudo jovens, de mochilas carregadas de víveres, água e bens de primeira necessidade, de baldes, pás e vassouras para limpar as lamas ou apenas com a boa vontade de ajudar, foi impressionante ver toda aquela gente a percorrer as distâncias em intermináveis filas, que se repetiram ao fim do dia (para alguns) em sentido inverso.
Nos locais em que prestaram serviço, as imagens que circularam pelos novos meios de comunicação mostram gente enlameada a tentar desobstruir ruas, a fazer recuar a lama, a apoiar os habitantes locais, abrindo a esperança de que, rapidamente sejam restabelecidas as redes de abastecimento de água, eletricidade e comunicações.
Múltiplas organizações da sociedade civil, incluindo várias igrejas de diferentes denominações cristãs puseram-se em campo, não apenas para minorar os estragos nas dependências próprias, mas para ajudar os vizinhos. As ordens religiosas, as dioceses da região e de toda a Espanha desencadearam campanhas de angariação de fundos e de recolha de alimentos, produtos de higiene, agasalhos, etc, em articulação com a rede da Cáritas e outras instituições e movimentos, além de promoverem tempos de oração e celebrações.
Pode dizer-se que são gotas de água face à dimensão do sofrimento e dos problemas que se podem resolver, mas não deixam de mostrar a sensibilidade e a compaixão ativa de tantos que, não tendo sido diretamente afetados, sabem que a humanidade se exprime e se recria no cuidado com os que precisam.
Parafraseando o que costumava responder o bispo de Setúbal, Manuel Martins (1927-2017), perante a adesão ao Fundo de Solidariedade que criou para atenuar a fome entre um grande segmento da população do distrito, nos anos 80: “É o evangelho que continua a escrever-se”.
Texto redigido por Manuel Pinto/jornal 7Margens, ao abrigo da parceria com a Fátima Missionária.