As práticas relativas ao Natal conheceram importantes remodelações na Inglaterra vitoriana e na América de Roosevelt. No século XIX, o Natal incorporou a celebração burguesa das virtudes públicas, do sucesso e do bem-estar económico das famílias. A sociedade do século XIX, atingida pelas mudanças brutais provocadas pela industrialização, recolhe-se no lar, reconstruindo aí uma narrativa de harmonia (tome-se como exemplo a moralidade familiar presente nos contos de Charles Dickens).
À celebração privada da harmonia familiar correspondem, na cena pública, as práticas da dádiva. Numa sociedade dualista, cujo crescimento económico era acompanhado pela emergência das modernas bolsas de pobreza, as civilidades próprias do tempo de Natal permitiam imaginar um remédio para a injustiça social, por via da dádiva aos pobres. No espaço doméstico burguês, a dádiva concentrava-se num destinatário, a criança, prática que permite simbolizar a experiência do dar sem receber. Nesse processo, as crianças são verdadeiros ‘passadores’ simbólicos. Elas são objeto do ‘excesso’ do dom, mas o destinatário último é a própria sociedade, que assim encontra novos equilíbrios. Esta é a trindade moderna do Natal: família, infância, caridade.
O Natal, naquilo que o descreve como ritual e civilidade familiar, foi acompanhado de múltiplos mecanismos de difusão (iconografia, mobiliário, narrativas), abrindo espaço para a homogeneidade decorativa que hoje nos invade. Transportado por migrantes, nas primeiras décadas do século XIX, feito herói em Nova Iorque, o último ‘descendente’ de São Nicolau, o Pai Natal, tornar-se-á, a partir da década de 1920, uma atração nos grandes armazéns. Regressou, com o Plano Marshall, à Europa, confundindo-se com a nova religião do mercado e da abundância.
Durante grande parte do século XX, no sul da Europa, persistiram algumas práticas que contrastavam com esse Natal internacionalizado. Visitar a memória portuguesa das festas da Natividade cristã – afetada por uma enorme erosão –, é descobrir um Natal vincadamente diferente daquele que vemos representado na cena mediática global. Descobre-se aí uma mística diferente. Os imaginários e as narrativas centram-se na figura do Menino Jesus e no quotidiano da Sagrada Família. Esta figuração, materializada nos presépios, permite uma fácil identificação entre a história sagrada e a experiência social, celebrando a vida a nascer e o mistério crente de um Deus humanado.
As narrativas que exprimem a celebração do Menino expõem uma religiosidade de índole doméstica, atualizadora de uma linhagem de afetos, nas casas e nos lugares comunitários. O Natal carrega os significados da religião do lar, nos seus dramas e encantamentos. Na música portuguesa de Natal e na literatura oral, que podemos encontrar nas recolhas etnográficas, podemos descobrir o rasto deste Natal ao sul – lugar onde se miniaturiza a história santa e se humaniza o divino, celebrando a família, a maternidade e a infância.
O Natal globalizado acentuou o cultivo das práticas da dádiva. Essas práticas persistem num terreno de ambiguidade, entre o conformismo e a resistência. É certo que elas se inscrevem num sistema social e económico marcado pelas lógicas próprias do mercado, em particular, a competitividade e o lucro. Mas, mesmo dentro desse contexto, a experiência da dádiva pode assinalar um outro mundo possível, onde a circulação do dom pode renovar os laços que tecem a nossa comum humanidade.