Foto: EPA / Spc. J. Tashun Joyce

Estão por todo o lado: nos baldios, mas também nos terrenos agrícolas; no edifícios destruídos, mas também nas casas aonde muitos deslocados regressam para tentar retomar as suas vidas. Nas escolas, nas clínicas médicas, nos mosteiros e igrejas… Em Myanmar, o número de minas terrestres antipessoais e de resíduos explosivos de guerra que provocaram vítimas foi quase três vezes superior em 2023 face ao ano anterior, e tudo indica que em 2024 esse número seja ainda mais elevado.

A denúncia é feita pela organização de defesa dos direitos humanos Human Rights Watch (HRW), no seu recém-lançado Landmine Monitor 2024. O relatório registou pelo menos 5.757 pessoas mortas e feridas em todo o mundo em 2023. E Myanmar surge pela primeira vez no topo da lista, com o maior número de vítimas anuais (1.003), ultrapassando a Síria, que esteve em primeiro lugar nos três anos anteriores e que agora passou a número dois, seguida do Afeganistão e da Ucrânia.

Quanto a 2024, só nos primeiros seis meses, Myanmar já registou 692 vítimas civis, das quais cerca de um terço são crianças. E “presume-se que os números reais sejam muito superiores”, alerta a HRW.

“O uso generalizado de minas antipessoais pelo exército de Mianmar ameaçará as vidas e os meios de subsistência dos moradores agora e nas próximas décadas”, lamenta Shayna Bauchner, investigadora da Human Rights Watch, citada no texto de apresentação do relatório. “A colocação de minas terrestres em casas, vilas e fazendas pela junta [militar no poder]  parece projetada para aterrorizar e prejudicar civis”, acrescenta.

Reconhecendo que os militares de Myanmar usam minas antipessoais há muito tempo, o documento sublinha que este uso “aumentou desde o golpe de fevereiro de 2021, no âmbito de uma campanha da junta de crimes de guerra crimes contra a Humanidade”. Alguns grupos armados não estatais também têm vindo a usar minas antipessoais, muitas vezes improvisadas, assinala o relatório.

Além disso, as unidades militares “têm cada vez mais cercado moradores para atuarem como varredores de minas humanos, incluindo crianças, forçando-as a seguir à frente das tropas para detonar quaisquer explosivos”, denuncia a HRW.  “Às vezes, forçam-nos a usar uniformes militares”, afirma um médico entrevistado pela organização no âmbito deste estudo. “Se ficarem feridas, são simplesmente deixadas para trás, para morrer.”

“Não pensei que os militares fossem colocar minas em minha casa”

Um outro médico, a trabalhar atualmente uma clínica no estado de Karenni (Kayah) – contou aos investigadores da HWR que operou 15 sobreviventes civis de minas terrestres desde 2022 — incluindo três crianças de 8, 12 e 15 anos — e mais de 50 combatentes da oposição feridos por minas. “Os soldados da junta deslocam os moradores e colocam minas terrestres na vila, nas fazendas, nos campos de arroz e milho e ao redor do acampamento militar”, confirma o cirurgião. “Os têm medo, mas quando chega a altura de colher o arroz e o milho, eles têm que voltar. As crianças vão com eles, e brincam nos campos. A junta está a prejudicar intencionalmente os moradores ao colocar minas nas fazendas porque, para eles, os moradores são os inimigos”, explica.

Daw Khin, 57 anos, pisou uma mina terrestre junto à casa de banho da sua própria casa, dois dias depois de ter regressado de um campo de deslocados, em setembro de 2022. Pouco mais de um ano antes, havia fugido de ataques aéreos militares na região. “Voltei para limpar, como muitos outros moradores”, disse ela à equipa da HRW. “Não pensei que os militares fossem colocar minas em minha casa.” Daw ficou inconsciente três dias, durante os quais os médicos amputaram a sua perna direita na totalidade e a parte inferior da perna esquerda. “Chorei durante semanas e fiquei tão deprimida… Ainda sinto dor. Sinto dormência o tempo todo”, partilha.

“Não tenho casa. Não posso trabalhar. Os militares destruíram tudo”

Para piorar ainda mais uma situação que já era difícil, em setembro, as inundações e deslizamentos de terra provocados pelo tufão Yagi afetaram cerca de um milhão de pessoas, aumentando os riscos associados às minas terrestres e munições não detonadas. “Com as inundações, as minas foram deslocadas para todos os lugares”, diz um médico que tem trabalhado na limpeza das áreas afetadas. “As monções enterram as minas terrestres sob a lama, então elas deixam de estar visíveis”, alerta.

A contaminação por minas terrestres também agravou a espiral de insegurança alimentar e o colapso económico em Myanmar, onde milhões estão  em risco de fome. E muitas pessoas ficam frequentemente ficam feridas “quando a fome e o desespero as empurram para áreas inseguras para encontrar comida”, assinala o relatório.

Além disso, as minas terrestres também são, muitas vezes, responsáveis pela morte de gado e por cortar o acesso dos fazendeiros à terra. E muitos dos sobreviventes não conseguem retomar os seus antigos meios de subsistência. “Desde que me feri, é mais difícil sobreviver”, conta U Win, um fazendeiro de 45 anos. Perdeu a perna esquerda inferior numa explosão de mina antipessoal em fevereiro de 2023, um ano depois de a sua casa ter sido destruída por um ataque aéreo. “Não tenho casa. Não posso trabalhar. Não tenho dinheiro nem emprego. Os militares destruíram tudo”, lamenta.

Recorde-se que 164 países subscreveram o Tratado de Proibição de Minas de 1997, que proíbe o uso, produção, transferência e armazenamento de minas antipessoais. O tratado também exige que as partes destruam estoques, limpem áreas afetadas por minas e ajudem as vítimas das explosões. Embora Myanmar seja um dos 33 Estados que não assinaram ainda o tratado, o uso de minas por parte da junta militar continua a ser ilegal, dado que estas armas são incapazes de distinguir entre civis e combatentes. E os responsáveis ​​pelo uso de armas proibidas ou pela realização de ataques indiscriminados podem ser processados ​​por crimes de guerra.

Texto redigido por Clara Raimundo/jornal 7Margens, ao abrigo da parceria com a Fátima Missionária.

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