São “números impressionantes” os dos atentados registados em todos os continentes, que traduzem uma tendência de crescimento de ataques contra lugares religiosos. A expressão é de Ignacio Ibáñez, do Gabinete das Nações Unidas para o Contra-Terrorismo e coordenador do Programa Global da ONU para as Ameaças a Alvos Vulneráveis. Foi usada na conferência sobre salvaguarda de sítios religiosos, que decorreu no Estoril, no âmbito do 10.º Fórum da Aliança das Civilizações das Nações Unidas (ACNU), no Centro de Congressos do Estoril, entre os dias 25 e 27 de Novembro.
Entre Setembro de 2023 e Abril de 2024, registaram-se várias centenas de lugares religiosos atingidos em todo o mundo. Desses, a maior parte verificou-se na Birmânia (Myanmar), com 200 lugares de oração atacados desde 2021, alegadamente pelos militares mandados pela Junta que governa o país; a seguir vem a Ucrânia (129 desde a invasão russa) e Gaza (com 16 cemitérios, 72 mesquitas e duas igrejas destruídas, apenas entre 7 de Outubro e 31 de Dezembro de 2023).
Se considerarmos só os ataques mais importantes, a tendência também é crescente – e preocupante: em 2021 houve oito ataques mais relevantes; em 2022 foram 14; em 2023 o número chegou aos 19 e, até Outubro de 2024, esse número já ia em 12.
Aquele responsável deu exemplos dos ataques mais significativos: em Janeiro de 2024, no Irão, duas bombas mataram mais de 100 pessoas e feriram mais de 200 num ataque ao cemitério do Jardim dos Mártires junto da mesquita Saheb al-Zaman; em Fevereiro, no Burquina Faso, mais de 20 pessoas foram assassinadas e mais de dez ficaram feridas quando estavam numa igreja. Em Junho, na Rússia, um ataque coordenado a duas igrejas ortodoxas e uma sinagoga fez 20 mortos e mais de 40 feridos.
Esses sítios são lugares onde as pessoas “se juntam para participar em cerimónias, rezar, meditar”, são lugares “especialmente vulneráveis” e alvos de quem procura atacar organizações religiosas, afirmou o Alto Representante para a ACNU, o espanhol Miguel Ángel Moratinos. Por isso devem “ser respeitados como locais de paz e harmonia, onde os fiéis se devem sentir seguros”.
Fala-se de lugares de oração, mas também se podem incluir estruturas educativas, abrigos para quem não os tem e outras estruturas sociais, exemplificou o responsável. Por isso, quaisquer actos de violência em relação a esses lugares devem ser condenados.
Um plano de acção para a salvaguarda
Moratinos convidou ainda os estados presentes na cimeira a apoiar o documento “Anéis de Paz – Plano de Acção das Nações Unidas para a Salvaguarda dos Sítios Religiosos: Em unidade e solidariedade para um culto seguro e pacífico”. Nele, a ACNU propõe a promoção do espírito de “respeito e a compreensão mútuos” ou a prossecução de esforços de “prevenção do extremismo violento através da educação”, e um “mapeamento dos locais religiosos em todo o mundo” que traduza “a espiritualidade dos locais religiosos”.
Para os líderes religiosos, o plano sugere iniciativas de oração conjunta, o envolvimento regular em iniciativas de diálogo inter-religioso, o contacto com pessoas das próprias comunidades que possam ser propensas “à radicalização e ao possível recrutamento por grupos extremistas violentos”, a educação sobre outras religiões e o envolvimento em redes sociais e sítios digitais para alargar o conhecimento acessível sobre as diferentes religiões, entre outros temas.
Os fornecedores de serviços tecnológicos e digitais têm também uma missão: proibir a distribuição de conteúdos terroristas e extremistas, disponibilizar mecanismos de denúncia e melhorar a tecnologia e a transparência. A partilha de informação, o debate entre os fiéis e as parcerias entre líderes religiosos, sociedade civil e estados, também integram o documento.
Arménia acusa Azerbaijão de destruir memória cristã
Se no campo dos princípios é possível aprovar documentos deste género, a sua aplicação nem sempre corresponde aos enunciados. Isso mesmo se verificou na própria sessão: a dado momento, registaram-se
três intervenções praticamente seguidas de representantes do Azerbaijão: o xeque Allahshukur Pashazade, presidente do Conselho dos Muçulmanos do Cáucaso e co-presidente do Conselho Inter-Religioso do país, enalteceu o governo do Presidente Ilham Aliyev, no cargo desde 2003. O regime, condenado em vários relatórios internacionais, “está a restaurar aldeias nos territórios libertados” de Artesaque (Nagorno-Karabakh), disse o líder religioso.
O ministro da Cultura do país, Adil Karimli, interveio no mesmo sentido para defender que “sem garantir a protecção dos lugares de culto é impossível garantir direito à liberdade religiosa”. O ministro assegurou que o governo que integra se “compromete a salvaguardar todos os lugares religiosos” por igual, independentemente do credo. A política do Presidente, acrescentou, é “promover a diversidade cultural e religiosa”, enumerando vários fóruns internacionais organizados pelo seu país – o último dos quais foi a COP29, sobre o clima, e incluindo três cimeiras no âmbito do diálogo inter-religioso; o Papa Francisco esteve, aliás, com o xeque Pashazade, em Outubro de 2016, num encontro inter-religioso com líderes judaicos, muçulmanos e cristãos ortodoxos russos.
Mas apesar destas declarações, “hoje” está a acontecer a destruição da herança cristã no Nagorno, incluindo a destruição de igrejas, acusou o bispo Vrtanes Abrahamyan, da Igreja Apostólica Arménia. Mais de um milhão de arménios foram expulsos de suas casas, há igrejas e lugares cristãos a serem destruídos, acrescentou.
Um relatório publicado em Junho de 2024 pelo Centro Europeu para a Lei e a Justiça corrobora várias destas acusações: “O Apagamento Sistemático da Herança Cristã no Nagorno-Karabakh”, o título do documento, regista a existência de 500 sítios culturais com aproximadamente seis mil relíquias do património cristão arménio. “Entre Novembro de 2020 e Setembro de 2023, dezenas de sítios do património cristão arménio em Nagorno-Karabakh foram destruídos ou danificados”, acusa o relatório, que identifica igrejas e lugares destruídos ou vandalizados. “Quando não foram demolidos, muitos destes sítios foram encerrados ao público, mesmo aos peregrinos.” Com o controlo total do Nagorno-Karabakh pelo Azerbaijão, na sequência de uma ofensiva militar em Setembro de 2023, a destruição do património cultural da Arménia só tem aumentado, com o Azerbaijão a recusar a entrada de observadores estrangeiros para verificar a situação e a fazer um profundo “revisionismo cultural”, negando que o património arménio tenha simplesmente existido.
Na conferência do Estoril, o comentário do bispo arménio motivou uma reacção violenta dos representantes do Azerbaijão, que acusaram o líder religioso de, sob essa capa, se esconder um criminoso que participou em massacres de azeris. A mesa teve de intervir, com Moratinos a dizer que esta era uma cimeira “construtiva” e não uma reunião do Conselho de Segurança…
A Declaração de Cascais
O fórum aprovou ainda a Declaração de Cascais “Unidos na Paz: Restaurar a Confiança, Reformular o Futuro – Reflectindo sobre duas décadas de Diálogo para a Humanidade”. Em 25 pontos, nela se reitera o empenhamento com os objectivos e princípios da ACNU e se elogiam os esforços para alargar o envolvimento com outras entidades do sistema das Nações Unidas e uma rede global de parceiros. O documento sublinha “a necessidade de combater todas as formas de intolerância religiosa”, destaca o papel da educação inclusiva na promoção da paz e dos direitos humanos, e reconhece o papel dos líderes religiosos “na mediação de conflitos e na cooperação para o desenvolvimento”.
A declaração refere ainda “o impacto positivo” da migração “segura, ordenada e regular” para a “promoção do pluralismo cultural”; destaca o papel dos jovens na prevenção da xenofobia; sublinha o diálogo intergeracional e o contributo da diplomacia desportiva e o papel das mulheres como negociadoras, mediadoras e pacificadoras; e apela à aplicação do Plano de Acção para a Salvaguarda dos Sítios Religiosos.
Texto: António Marujo, jornalista do setemargens.com.
O autor escreve segundo a antiga ortografia