“Depois de um primeiro momento de expansão do cristianismo, surge como líder do Japão Toyotomi Hideyoshi. Ele queria unificar todo o país, que antes estava dividido e em guerra, e desde há muito tempo. E para unificar o país, uma das medidas que tomou foi eliminar o cristianismo. E os 26 mártires de Nagasáqui foram, em 1597, as primeiras vítimas dessa mudança de política oficial no Japão”, explica o historiador Kazutoshi Kakimori, descendente dos Kakure Kirishitan, os cristãos ocultos, de visita a Lisboa para uma palestra sobre uma das mais fascinantes comunidades cristãs. O professor Kakimori falou em japonês e a tradução foi feita por Renzo de Luca, jesuíta argentino que é o diretor do Museu dos 26 Mártires em Nagasáqui.
Os portugueses chegaram ao Japão em 1543, o primeiro contacto de sempre de europeus com o arquipélago. Depois dos mercadores vieram os missionários, com destaque para São Francisco Xavier, que com a ajuda de um japonês convertido tentou explicar o cristianismo. Nascido em Navarra, hoje parte de Espanha, Xavier era jesuíta e estava ao serviço do Padroado do Oriente, falando português, que aprendeu em Lisboa e também em Goa. No esforço de missão no Japão usou pinturas da Virgem Maria e da Virgem com Jesus para tentar comunicar com o povo. Apesar das muitas dificuldades de comunicação, a fé cristã começou a expandir-se e o facto de, iniciadas as perseguições religiosas, meio século depois, os primeiros mártires terem sido na sua maioria japoneses mostra o sucesso do cristianismo nas ilhas.
“Foram 26 martirizados ao todo, 20 eram japoneses, cinco espanhóis, um deles originário do México, e um português da Índia, São Gonçalo Garcia. Estas medidas extremas mostram a influência do cristianismo e a determinação de o contrariar para evitar mudanças no Japão”, sublinha Kakimori. Com os xóguns do clã Tokugawa a perseguição intensificou-se, pois o objetivo da unificação nacional passava por eliminar uma crença trazida por estrangeiros e vista com suspeitas. Explica o historiador: “Os Tokugawa reforçaram a linha de intransigência. Chegou um momento em que a proibição não era apenas para os padres estrangeiros, mas para qualquer pessoa que se declarasse cristã. Portanto, nesse sentido, a linha foi endurecida. Como a perseguição era muito rigorosa, os cristãos começaram a esconder-se, a camuflar a sua fé e assim por diante. A partir daí começa o período dos Kakure Kirishitans, os cristãos ocultos”.
As estimativas para finais do século XVI, quando começam as perseguições, apontam para 300 mil cristãos japoneses, incluindo daimios, os chamados senhores da guerra, e também guerreiros, os famosos samurais. Das quatro grandes ilhas japonesas, é em Kyushu, a mais a sul, que os missionários, sobretudo jesuítas, têm maior sucesso. Tem muito que ver com a forte presença portuguesa nessa região: “A influência em Kyushu, principalmente em Nagasáqui, que se tornou o centro do cristianismo, foi devida à chegada dos navios portugueses, ou seja, da cultura portuguesa, e, obviamente, dos padres. Muitas pessoas, não apenas os Daimios, mas também quem os rodeava, tornaram-se cristãos, e isso teve um efeito que ajudou à expansão da fé. Terem acesso aos portugueses, depois a outros estrangeiros também, fez mais fácil para os habitantes de Kyushu tornarem-se cristãos, porque estavam sempre a aprender mais sobre o cristianismo, por exemplo, a importância da Bíblia”. Sobre a hipótese de a conversão trazer ascensão social, o historiador não concorda. “Creio que não. Tornarem-se cristãos não lhes deu melhor estatuto. Mas deu-lhes sentido de comunidade. As pessoas passaram realmente a ter um conhecimento espiritual interno e isso fez com que elas, apesar das perseguições, se unissem, seguindo aquilo que os mais velhos diziam, mantendo a fé cristã dos antepassados. Sentiam a obrigação de manter o cristianismo, porque também era importante para os mais velhos, e para os mais velhos também se tornou importante transmitir a fé à nova geração”, afirma Kakimori, sempre traduzido pelo padre De Luca, que foi aluno de Jorge Mario Bergoglio na Argentina e quando este se tornou o Papa Francisco e mais tarde visitou o Japão teve o antigo estudante como tradutor.
Com as perseguições, deixou de haver padres estrangeiros no Japão, mas o conhecimento do cristianismo manteve-se entre os cristãos ocultos, garante Kakimori, que descende dessa comunidade: “Não se perdeu, porque os cristãos ocultos escolheram três tipos de líderes para manter a fé cristã. Ou seja, não havia padres, mas havia pessoas que substituíam os padres. O chokata, que mantinha os registos, o mizukata, que fazia os batismos, e o shukuro, o diácono. Isto é, mantiveram a tradição cristã quase na perfeição. Ou seja, tinham a tradição cristã, quem batizava, quem transmitia o calendário. Por exemplo, celebravam-se a véspera de Natal e as cerimónias de Natal, ou quando alguém morria faziam-se orações, para que essa pessoa fosse salva. Confiavam-no a Cristo. Ou seja, mantiveram toda a estrutura, toda a tradição cristã enquanto tal”.
Depois da expulsão dos últimos portugueses, em 1639, o único contacto do Japão com o Ocidente era com os holandeses confinados à ilha artificial de Dejima, no porto de Nagasáqui. Mas eram protestantes, enquanto os cristãos ocultos eram católicos. Totalmente isoladas, as famílias de Kakure Kirishitan fecharam-se como comunidade, quase uma comunidade secreta, mas não fechada. “Tinham de ter muito cuidado, mas em geral mantinham uma boa conexão com o resto da sociedade. Por exemplo, no caso de Nagasáqui, ou em Amakusa, uma rapariga, uma jovem de fora, podia vir e casar-se com alguém do grupo dos cristãos ocultos. Por vezes, ambos eram cristãos, outras vezes não”.
Depois de dois séculos fechado ao mundo, o Japão reabriu-se em meados no século XIX, com os próprios xóguns Tokugawa a tentarem modernizar o país, mas sendo afastados, com o famoso imperador Meiji a assumir a liderança do país. É quando Edo passa a chamar-se Tóquio e se torna a capital japonesa. Para os cristãos ocultos tudo muda, mas não sem alguns desafios.
“Quando o Japão reabriu, são os missionários franceses que chegam primeiro, e a sua missão era, digamos, chamar os cristãos ocultos para a Igreja Católica. Mas houve uma grande parte que não regressou à Igreja, que decidiu não regressar oficialmente à Igreja, mas sim manter a tradição dos antepassados. Penso que uma das razões foi que os missionários dessa Era Meiji forçaram muito o povo, impuseram um estilo europeu que os cristãos ocultos não podiam aceitar. E assim passaram a coexistir duas comunidades católicas no Japão”, conta o historiador. Que acrescenta: “Já não existe essa diferença. Há algumas décadas que não. Durante muito tempo ainda se mantiveram em Narushima, a minha ilha, nas Ilhas Goto. O meu avô era mizukata, a pessoa que fazia batismos”.
Com a diminuição da população em Nagasáqui, e também nas vizinhas Ilhas Goto, o próprio número de católicos reduziu-se bastante e hoje é em Tóquio que há mais católicos. Entre um e dois milhões de japoneses são cristãos, tanto católicos como protestantes, o que representa cerca de um por cento da população. Mas os cristãos têm forte presença na sociedade e já houve primeiros-ministros católicos e protestantes, como é o caso do atual, Shigeru Ishiba. A história de São Francisco Xavier no Japão é ensinada nas escolas, tal como a chegada dos portugueses, que trouxeram, por exemplo, a espingarda, que depois foi produzida no Japão, dando força a um lado e pondo fim à guerra civil.
Há uns anos, baseado num romance do japonês Shusaku Endo, Hollywood fez o filme ‘Silêncio’, realizado por Martin Scorsese, sobre a apostasia de Cristóvão Ferreira, um jesuíta português perseguido no Japão. Toda a história dos cristãos japoneses perseguidos é abordada no filme, mas o historiador não se reconhece na obra de Scorsese: “Há algo da história dos cristãos ocultos que é transmitido no filme, dado a conhecer, mas parece-me que não é a história mais necessária, a mais importante. O que é importante é as pessoas, no Japão e fora do Japão, saberem que nós, os descendentes dos cristãos ocultos japoneses, fazemos, as orações que os cristãos nos ensinaram no século XVI – como as orações a Maria –, e fazemo-las sem jamais ter havido interrupção. Neste sentido, a memória da época dos Kakure Kirishitan até aos dias de hoje foi protegida. As orações, por exemplo, que os cristãos aprendiam antes das perseguições, como o Pai Nosso, a Avé Maria, o Glória, tudo isso, foram fielmente guardadas. Passados 200 ou 300 anos, os cristãos ocultos ainda oravam com as mesmas palavras. O calendário litúrgico usava as palavras portuguesas para os dias da semana. Hoje queremos, sobretudo nas Ilhas Goto, proteger esse legado, tanto material, como a Gruta das Orações ou a praia onde se faziam os batismos, como espiritual. Por isso, há dois anos retomámos a cerimónia do Osazuke, o batismo, pela primeira vez em meio século. A parte espiritual deve ser preservada e relembrada, é a mais importante”.
Descobrir os Kakure Kirishitan em Lisboa
“Kakure Kirishitan – Cristãos Ocultos” é o nome da exposição que pode ser vista na Biblioteca São João Paulo II da Universidade Católica de Lisboa até final de janeiro. Inaugurada a dois de dezembro, na presença do Patriarca de Lisboa, a exposição mostra a história de uma comunidade que sobreviveu a perseguições religiosas muito violentas e a um isolamento do resto do mundo cristão durante dois séculos. A exposição sobre os cristãos ocultos foi organizada pela Fundação Yumenosya e a entrada é gratuita.
Leonídio Paulo Ferreira, jornalista do DN