O padre açoriano José Júlio Rocha pediu a palavra no momento final do encontro sinodal em Fátima, sábado passado (dia 11) e contou o que ouviu uma vez ao fundador dos Cursos de Cristandade, o padre espanhol Eduardo Bonnin: só há dois tipos de cristãos: os cristãos-gatos, aos quais basta a sua caixa de areia e a comida; e os cristãos-cães, que não se importam onde vão arranjar comida ou onde vão dormir, mas que estão sempre junto do dono.
“Precisamos de ser cristãos-cães, que seguem o seu ‘dono’, Jesus Cristo”, para chegar a uma Igreja de escuta e desclericalizada, com “o padre e o leigo no seu lugar, preocupada por ter mais qualidade e menos quantidade”. E acrescentou depois ao 7Margens, em jeito de diagnóstico: “O Concílio Vaticano II foi uma explosão, mas depois, com muitos padres a sair do ministério e muitos leigos a deixar a Igreja, veio o medo.” O Papa João Paulo II travou algum do espírito do Concílio, acrescentou, e o Código de Direito Canónico veio “mais conservador” do que o Vaticano II.
Trezentas pessoas, incluindo bispos e padres, religiosas e leigos, estiveram sábado em Fátima para avaliar o caminho já percorrido até agora em Portugal, em resposta ao Sínodo sobre a sinodalidade, convocado pelo Papa entre 2021-2024. No final, 36 grupos entregaram à Conferência Episcopal Portuguesa (CEP) um conjunto de quase duas centenas de propostas que pretendem concretizar o Documento Final (DF) do Sínodo em Portugal.
Entre elas, além das já referidas, estão a realização de um novo encontro deste género daqui a um ano para “apresentar boas práticas” e avaliar o caminho entretanto percorrido; a criação de um “ministério do acolhimento e escuta”; a “obrigatoriedade de conselhos pastorais em todas as paróquias”, como órgãos de consulta do pároco (ou do bispo, no caso dos diocesanos); a análise da “realidade que existe em cada comunidade, para discernir acções concretas”; a inovação na formação, que deve abranger todos os níveis, “com linguagens actuais” e sem “ter medo” de acabar com “o que não dá frutos”; a criação de hábitos de avaliação em todas as estruturas católicas; ou ainda a divulgação do DF por todos os meios e o desenvolvimento das “estruturas de sinodalidade existentes”, com mais representatividade dos diferentes membros da comunidade.
“Não vale a pena fazer conferências”
No plenário final, cada grupo enunciou apenas uma das propostas enunciadas, entregando as restantes à Conferência Episcopal. Na fase final de intervenções livres, Francisco Pombas, de Santarém, insistiu mesmo que “não vale a pena fazer conferências”, mas antes multiplicar dinâmicas como a de sábado, em que o grosso do tempo foi vivido em debate nos grupos.
“Transmitir, informar e assumir que o percurso sinodal é possível, premente e de pequenos passos” foi a sugestão de outro participante, enquanto um terceiro insistia na activação e fortalecimento de órgãos como os conselhos pastorais e conselhos económicos – que não funcionam em muitas paróquias, apesar de serem obrigatórios, como recordava ainda uma terceira pessoa.
“Não são precisas mais estruturas, é preciso é agilizar o que existe”, comentava o padre José Júlio Rocha ao 7Margens. “Portugal é terra de missão e a Igreja tem de perguntar como vai anunciar Jesus.”
Destacando a experiência de sábado como traduzindo “uma Igreja que pensa”, o padre açoriano, vigário episcopal para o clero e assistente da Comissão Diocesana Justiça e Paz, diz que “mesmo que não haja resultados imediatos” deste encontro, ele é “um primeiro passo”. A Igreja deve “converter-se o mais possível a Jesus Cristo” e, num tempo em que a sociedade “odeia cada vez mais os pobres, os imigrantes, os muçulmanos, os beneficiários de Rendimento Social de Inserção, os violentos ou os presos”, os católicos devem ser uma voz alternativa, acrescenta.
Visivelmente satisfeito com o encontro, o presidente da Conferência Episcopal disse no final aos jornalistas que viu também a mesma “satisfação na cara de muita gente”. “Este caminho, que parecia para alguns não ter futuro, é o futuro”, mesmo que precise de “ser testado”.
Questionado pelo 7Margens sobre o que fazer nas paróquias onde os párocos boicotam activamente a concretização do Sínodo, o também bispo de Leiria-Fátima, citou o Papa Francisco, para dizer que se o processo sinodal “não causasse alguma reacção contrária” quereria dizer “que não estava a tocar nas feridas”. E acrescentou: “Não construímos uma Igreja contra ninguém e procuramos é que todos percebam que este é caminho: continuar a caminhar juntos, a programar juntos, a sonhar juntos, também a corrigir juntos”.
Documento “pode e deve mudar vida da Igreja”
De manhã, na abertura do encontro, o presidente da CEP tinha sublinhado a importância da realização do encontro nacional, e da sua repetição em todas as dioceses, paróquias, comunidades de vida consagrada, grupos e movimentos. O Documento Final do Sínodo, afirmou, “pode e deve mudar as comunidades e a vida da Igreja em Portugal, não pode ser só para estar na prateleira e fazer citações dele”.
Na apresentação inicial do DF do Sínodo, Carmo Rodeia (Angra) e o padre Eduardo Duque (Braga), membros da equipa sinodal nacional, sublinharam que “a sinodalidade não é uma opção, mas uma característica essencial da Igreja do presente e do futuro, onde a escuta e a consideração mútua, o discernimento colectivo e a colaboração entre todos os baptizados são a face da mesma fraternidade”.
A criação de “espaços específicos para ouvir todas as pessoas, especialmente, as pessoas com deficiência e os grupos marginalizados” foi outra das ideias retiradas por Carmo Rodeia do Documento Final do sínodo. A par, também, da “cultura da inclusão e participação” nas comunidades católicas.
Na intervenção com que sintetizaram o texto da assembleia do Vaticano, assumido pelo Papa como seu, Carmo Rodeia e Eduardo Duque sublinharam ainda a importância de renovar a catequese e a liturgia, o envolvimento dos jovens e das famílias, e a preocupação com a justiça social, a casa comum e a inserção dos cristãos na política. No entanto, na assembleia havia poucas pessoas abaixo dos 40 anos, e nas propostas escolhidas pelos grupos para apresentar em plenário, não houve muitas na linha da reflexão bíblica ou da acção social e política.
“Decisão não pode estar centrada numa só pessoa”
A sinodalidade, como processo de “caminhar juntos” e de fomentar a participação na vida da Igreja, “deve ser vivida em todos os níveis da Igreja, desde a base até à hierarquia, num clima de comunhão onde todos têm igual dignidade como baptizados, exigindo uma conversão permanente e uma verdadeira disponibilidade para experimentar um novo modo de viver a fé em Jesus Cristo, nas realidades do dia-a-dia, mais apoiados uns nos outros, sem deixar ninguém para trás e com a participação do maior número”, sintetizaram ainda os dois elementos da equipa sinodal. “Os processos de decisão não podem estar centrados numa pessoa”, defendeu Eduardo Duque.
Do DF, destacaram ainda que ele sugere que a Igreja, “para ser verdadeiramente sinodal, precisa de aprofundar a sua espiritualidade e fortalecer a sua vida interior”. “A escuta de Deus deve ser o ponto de partida para qualquer discernimento, e a Igreja deve cultivar uma espiritualidade que leve à acção, à compaixão e à solidariedade com os outros, sem descurar a formação contínua dos seus elementos.”
Na intervenção conclusiva, o bispo de Coimbra, Virgílio Antunes, destacou o “grande número” de participantes – só a diocese do Funchal não esteve presente e além dessa apenas a de Lamego não teve o bispo presente. “Para todos, é um sinal evidente de que estamos desejosos de dar continuidade a este processo de sinodalidade e que percebemos o seu alcance”, afirmou.
“Nós, em Portugal, desejamos uma Igreja viva, desejamos uma Igreja convertida, uma Igreja humilde, uma Igreja evangelizadora, e estamos disponíveis para construir uma Igreja sinodal”, concluiu.
Texto redigido por António Marujo/jornal 7Margens, ao abrigo de uma parceria com a Fátima Missionária.
O autor escreve segundo a antiga ortografia.